As investigações da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do INSS reacenderam as suspeitas de que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva teria atuado para proteger associações e sindicatos historicamente ligados ao PT e investigados por irregularidades em descontos de aposentados e pensionistas.
A apuração parlamentar, ainda em curso, aponta uma sequência de decisões políticas, administrativas e judiciais que, segundo parlamentares da oposição, indicam favorecimento institucional a essas organizações.
O caso envolve tanto a atuação direta de órgãos como a Advocacia-Geral da União (AGU) e o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) quanto manobras no Congresso que teriam dificultado a investigação de possíveis aliados do Palácio do Planalto.
A própria CPMI tem enfrentado dificuldades para desvendar a relação entre o governo, partidos de esquerda e entidades investigadas. Apesar de ter a presidência e a relatoria da comissão, a oposição tem sido derrotada pela maioria governista na votação dos requerimentos com maior potencial de revelar essa ligação.
No centro das suspeitas estão a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), que arrecadou mais de R$ 3,6 bilhões nos últimos dez anos em descontos previdenciários, e o Sindicato Nacional dos Aposentados, Pensionistas e Idosos (Sindnapi), presidido por Milton Baptista e que tem o irmão do presidente, José Ferreira da Silva, o Frei Chico, como vice.
Ambas são citadas em relatórios da Controladoria-Geral da União (CGU) e da Polícia Federal (PF) por indícios de irregularidades, mas seguem poupadas de medidas mais duras, o que, na visão da oposição, configuraria blindagem política.
Entre os episódios apontados estão a liberação de descontos associativos à Contag em 2023, autorizada pelo então presidente do INSS Alessandro Stefanutto, mesmo diante de pareceres contrários; a rejeição de convocações de figuras próximas ao governo na CPMI; e decisões da AGU que excluíram as entidades de bloqueios judiciais e defenderam no Supremo Tribunal Federal (STF) a continuidade dos descontos.
Paralelamente, o governo manteve espaços de influência para essas organizações em conselhos e colegiados federais: desde o início do governo Lula, representantes da Contag foram nomeados para o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) e para o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa (CNDPI).
A seguir, a Gazeta do Povo detalha seis indícios levantados por parlamentares e documentos oficiais que sustentam a suspeita de uma ação articulada do governo para proteger entidades aliadas no escândalo bilionário do INSS.
A reportagem solicitou informações aos órgãos citados e aguarda posicionamento das instituições para acrescentar no texto.
1. Exclusão da Contag e do Sindnapi de ações cautelares da AGU
Em maio de 2025, a Advocacia-Geral da União optou por não incluir a Contag e o Sindnapi na lista de entidades com bens bloqueados judicialmente, apesar de relatórios da CGU apontarem indícios consistentes de irregularidades. O órgão alegou que a decisão se baseou em critérios técnicos previstos na Lei Anticorrupção e priorizou outras 12 entidades classificadas como “núcleo da fraude”.
A decisão causou estranheza entre parlamentares da oposição, uma vez que a CGU havia identificado que a Contag movimentou R$ 3,6 bilhões na última década por meio de descontos associativos e detectado transações financeiras suspeitas envolvendo uma agência de viagens. No caso do Sindnapi, auditoria da Controladoria revelou movimentação de cerca de R$ 150 milhões em 2024, com fortes indícios de descontos não autorizados.
O ministro da AGU, Jorge Messias, afirmou à época que as entidades bloqueadas eram suspeitas de pagamento de propina e de atuarem com entidades de fachada para extrair recursos do INSS por meio dos descontos associativos. No entanto, não especificou os critérios técnicos que levaram à exclusão das duas confederações com vínculos históricos ao PT.
A Gazeta do Povo questionou a AGU sobre os motivos que levaram o órgão a não incluir a Contag e o Sindnapi na lista de associações bloqueadas. Mas a instituição não respondeu.
Parlamentares da oposição classificaram a exclusão como “blindagem política”. O deputado Marcel van Hatten (Novo-RS) afirmou que “a CGU, ao adotar medidas, já havia identificado problemas nos descontos associativos de mais de 40 entidades com Acordos de Cooperação Técnica. Mesmo assim, associações com vínculos históricos ao PT, como a Contag e o Sindnapi, foram deliberadamente excluídas dessas providências, evidenciando mais uma vez a proteção política e a falta de ação contra irregularidades”.
A Gazeta do Povo também procurou o Sindnapi sobre as alegações feitas pelo parlamentar, mas até a publicação desta reportagem não recebeu posicionamento. O espaço permanece aberto.
2. Liberação de descontos em massa à Contag pelo INSS em 2023
Em depoimento à CPMI, em 13 de outubro de 2025, o ex-presidente do INSS, Alessandro Stefanutto, admitiu ter autorizado em 2023 a inclusão em lote de 34.487 beneficiários da Contag para descontos associativos, contrariando pareceres técnicos e jurídicos internos do instituto.
Segundo auditoria interna revelada pela Polícia Federal, apenas 213 aposentados — menos de 2% do total — haviam assinado requerimentos autorizando descontos. Isso significa que 98,3% dos descontos foram liberados sem autorização expressa dos beneficiários, em violação às normas previdenciárias.
A senadora Damares Alves (Republicanos-DF) classificou a liberação como “mais um indício de favorecimento político a entidades aliadas do governo”.
O senador Eduardo Girão (Novo-CE) avaliou que houve leniência de diferentes órgãos públicos em benefício da Contag.
“Pelo que os fatos indicam, não há a menor dúvida de que a Contag foi beneficiada tanto pela direção do INSS quanto pela AGU e pela cúpula do atual governo federal […] Steffanuto autorizou o desbloqueio (em lote) sem anuência de mais de 33 mil segurados”, afirmou.
Para Girão, a afinidade ideológica explicaria a proteção à entidade. “A Contag é uma instituição controlada pelo PT e uma das que mais se beneficiaram do roubo aos aposentados”, declarou o senador.
3. Blindagem do irmão de Lula na CPMI
A convocação de José Ferreira da Silva, o Frei Chico, irmão do presidente Lula e vice-presidente do Sindnapi, foi rejeitada pela CPMI do INSS em 16 de outubro de 2025, por 19 votos a 11.
A votação ocorreu após o relator, deputado Alfredo Gaspar (União-AL), apresentar documentos da CGU que apontam que o Sindnapi omitiu a presença de Frei Chico na direção da entidade ao renovar um Acordo de Cooperação Técnica (ACT) com o INSS, em 2023. A omissão fere a Lei nº 13.019/2014, que proíbe parcerias entre órgãos públicos e entidades dirigidas por parentes de autoridades do Executivo.
Segundo a CGU, o sindicato enviou uma declaração inverídica ao governo federal para viabilizar o acordo. Ainda assim, a base governista barrou a convocação, o que foi classificado pela oposição como tentativa de “blindagem política”.
4. Blindagem de Carlos Lupi e adiamento da quebra de sigilos
O ex-ministro da Previdência Social Carlos Lupi, que comandou a pasta entre janeiro de 2023 e maio de 2025 e estava no cargo quando o escândalo das fraudes foi revelado, também foi alvo de proteção política na CPMI. Em 16 de outubro, por acordo entre oposição e governistas, foram retirados da pauta os requerimentos que determinavam as quebras dos sigilos bancário, fiscal e telemático de Lupi.
O ex-ministro não só estava no cargo quando ocorreram descontos suspeitos envolvendo a Contag, como ele recebeu pessoalmente representantes da entidade supostamente para discutir condições de seus associados.
O relator Alfredo Gaspar havia defendido o acesso aos dados do ex-ministro para verificar possível omissão diante das fraudes. No entanto, a maioria governista conseguiu adiar indefinidamente a análise dos pedidos. O presidente da CPMI, senador Carlos Viana (Podemos-MG), afirmou que os pedidos podem retornar à pauta a qualquer momento, mas até agora não há data definida.
Lupi foi ouvido pela CPMI em 8 de setembro de 2025. Durante o depoimento, ele defendeu sua gestão e negou conhecimento sobre o esquema de fraudes. Registros mostram que representantes da Contag tiveram seis reuniões com ele em 2023.
5. Omissão de vínculo entre a Contag e deputado do PT
A relação histórica entre o PT e a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) é marcada por laços políticos e sindicais que se consolidaram ao longo das últimas décadas. Focada na representação dos trabalhadores rurais, a entidade teve papel relevante na formação da base social do partido e compartilha lideranças com trajetória comum. Entre elas está Aristides Veras, ex-presidente da Contag e um dos fundadores do PT nos anos 1980.
No caso do Sindicato Nacional dos Aposentados, Pensionistas e Idosos (Sindnapi), a aproximação com o campo petista é mais recente. Criado em junho de 2000, o sindicato é ligado à Central Força Sindical, principal concorrente da Central Única dos Trabalhadores (CUT) — entidade tradicionalmente vinculada ao PT. Em 2008, o irmão do presidente Lula, José Ferreira da Silva (Frei Chico), passou a integrar o Sindnapi e, em 2021, assumiu o cargo de diretor, reforçando a interlocução política entre o sindicato e setores próximos ao governo.
Relatórios da Controladoria-Geral da União (CGU) revelaram que tanto a Contag quanto o Sindnapi omitiram informações sobre vínculos políticos de seus dirigentes ao celebrar Acordos de Cooperação Técnica (ACTs) com o INSS, prestando declarações falsas que burlaram a legislação sobre parcerias públicas.
No caso da Contag, a CGU apontou que a entidade deixou de informar que Aristides é irmão do deputado federal Carlos Veras (PT-PE), que desde 2024 ocupa o cargo de primeiro-secretário da Câmara dos Deputados. A omissão, segundo a Controladoria, fere a Lei nº 13.019/2014, que trata das parcerias entre a administração pública e organizações da sociedade civil.
O relatório da CGU embasou a abertura de processo de responsabilização contra a Contag em setembro de 2025. A defesa de Aristides alegou que a norma citada se aplica apenas a termos de fomento ou colaboração, e não a ACTs. Em nota, a confederação afirmou que os acordos com o INSS foram firmados de forma “legal, transparente e em total conformidade” com a legislação.
Situação semelhante foi identificada no Sindnapi, que omitiu a presença de Frei Chico na diretoria ao renovar acordo de cooperação com o INSS em 2023.
Em nota enviada à Gazeta do Povo, a Contag negou qualquer irregularidade e afirmou que é “infundada a suposição de qualquer tipo de “blindagem” ou “favorecimento político” à instituição neste caso. Verifica-se apenas o cumprimento do devido processo legal”. Confira a nota na íntegra ao final da matéria. A reportagem também procurou o Sindnapi, mas até a publicação desta matéria não houve retorno.
6. Defesa da AGU e da PGR pela manutenção dos descontos associativos no STF
Em julho de 2025, meses após a deflagração da Operação Sem Desconto, a AGU e a Procuradoria-Geral da República (PGR) se posicionaram contra a ação do PDT que pedia a proibição dos descontos de mensalidades associativas em benefícios do INSS. No despacho enviado ao STF, a PGR argumentou que o uso fraudulento dos descontos não torna a norma que os permite “inconstitucional”.
Defendendo a manutenção dos descontos, a AGU argumentou à Gazeta do Povo que os desdobramentos da Operação Sem Desconto não invalidam a legislação que permite os descontos associativos (Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991).
“O direito de associação pode ser exercido por meio de salvaguardas, como a exigência de autorização prévia, pessoal e específica para o desconto associativo, obrigação de revalidação periódica dessa autorização e possibilidade de exclusão do desconto a qualquer tempo, tal qual determina a legislação em análise. Cabe ressaltar que as normas vigentes também vedam expressamente descontos de taxas extras e contribuições especiais, empréstimos e exigem regularidade fiscal das associações”, afirmou a AGU em nota.
O presidente da CPMI, senador Carlos Viana (Podemos-MG), criticou o posicionamento: “A AGU entrou com uma defesa dizendo que não há crime nos descontos associativos. Eles admitem a crise, reconhecem a irregularidade, mas dizem que é preciso criar uma lei específica. Isso é dar uma nova narrativa a toda essa história”.
A senadora Damares Alves (Republicanos-DF) também considerou “estranha” a postura do órgão: “Causa estranheza essa insistência em excluir entidades que fraudaram os aposentados da lista de quem deve ressarcir — e mais ainda defender a manutenção dos descontos associativos mesmo diante de tamanha roubalheira”.
A CPMI aprovou convite para que o advogado-geral da União, Jorge Messias, compareça ao colegiado, mas ainda não há data definida para o depoimento.
Contag nega irregularidades
“A CONTAG esclarece que não tem qualquer fundamento a especulação que tenha sofrido bloqueio ou apreensão de bens, valores ou patrimônio, porque não possui qualquer vínculo com irregularidades relacionadas aos fatos sob investigação no INSS.
É infundada, portanto, a suposição de qualquer tipo de “blindagem” ou “favorecimento político” à instituição neste caso. Verifica-se apenas o cumprimento do devido processo legal.
A Confederação atua com absoluta lisura e conformidade jurídica, tendo apresentado toda a documentação exigida pelo INSS para a habilitação dos descontos associativos, incluindo comprovação de autorização de aposentados e aposentadas.
A entidade segue colaborando com órgãos de controle sempre que solicitada.
A CONTAG é uma confederação sindical nacional sem qualquer vinculação partidária, atuando de forma independente em prol dos melhores interesses da categoria profissional trabalhadora rural que representa. Com mais de 60 anos de atuação, é uma entidade sindical legítima e representativa, comprometida com a transparência e a defesa dos direitos dos trabalhadores rurais e da agricultura familiar.”





