Combo de “golpismo” e cortes ouriça militares e testa relação com Lula

Insatisfação generalizada com mudanças na previdência e fragilidade põem à prova período de relativa calmaria

Enquanto um general continua preso e 25 militares das Forças Armadas foram indiciados por suposta trama golpistas para impedir a posse de Lula, a maior preocupação dos integrantes de Exército, Marinha e Aeronáutica nos últimos dias tem sido outra: a parte que lhes caberá no pacote de corte de gastos do governo federal.

A convergência temporal entre as novas revelações sobre oficiais fardados, segundo a PF, teriam tramado um golpe e a inclusão da previdência das Forças Armadas no ajuste fiscal provocou agitação na chamada “família militar” e representa um desafio político nas relações entre o Palácio do Planalto e a caserna como em poucos momentos do terceiro mandato de Lula —o pós-8 de Janeiro, com a troca no comando do Exército após só três semanas de governo, ainda encabeça essa lista.

Os militares são maioria entre os 37 indiciados pela PF no inquérito da suposta trama golpista: os 25 representam dois terços do total. Destes, 7 são oficiais-generais (incluindo ex-comandantes da Marinha e do Exército) e 12 são militares da ativa. Além dos indiciados, o general da reserva Mario Fernandes foi preso (junto com outros três oficiais do Exército e um policial federal) sob acusação, segundo a PF, de preparar um golpe e tentar assassinar Lula, o vice Geraldo Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes, do STF.

Alguma alteração na previdência dos militares já era esperada havia meses, mas o fato de o anúncio de que essas mudanças entrariam no pacote ter sido feito nos estertores do processo, logo em seguida aos indiciamentos e novas prisões de fardados, amplificou os queixumes na caserna e deixou no ar a desconfiança de que o timing poderia ter algo de revanchismo –como se o governo tivesse aproveitado a fragilidade política provocada pelas ações da PF para fazer agora o que viria mais cedo ou mais tarde.

Na verdade, embora a Defesa tenha sido de fato o último ministério a entrar no pacote, desde o dia 11 de novembro (antes, portanto, dos indiciamentos e novidades sobre planos golpistas) o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, já tinha avisado que Lula pedira para incluir de última hora mais uma pasta nas negociações.

Das quatro medidas propostas para enxugar gastos com o sistema de proteção das Forças Armadas, a mais significativa, e que encontra maior resistência entre os militares, é a que estabelece a idade mínima de 55 anos para a passagem à reserva —hoje, não há idade mínima, mas é necessário que cumpram 35 anos no serviço ativo; até 2019, bastavam 30 anos. Faltava ser anunciada a regra de transição e os impactos econômicos da medida.

Nos últimos dias, a reportagem conversou com oficiais da ativa e da reserva das três Forças Armadas. Enquanto vigora uma decepção algo resignada com o golpismo dos colegas —sempre sob o argumento de que se trata de desvario de atores isolados, e não das corporações institucionalmente—, a insatisfação com as mudanças na previdência é generalizada.

Como definiu um coronel da ativa do Exército, o sargento de um pelotão de fronteira está muito mais preocupado com quando vai poder passar à reserva do que com a prisão de um general.

O que é vocalizado em conversas reservadas e em grupos de aplicativos veio à luz em um vídeo publicado pela Marinha, Força Armada que mais tem se queixado de dificuldades orçamentárias no governo Lula.

Para reagir à ideia de que militares têm privilégios, a peça retratou os civis brasileiros como gozadores de uma doce vida. A iniciativa foi considerada um tiro no pé, dada a enorme reação negativa em redes sociais, as críticas de dirigentes do PT e o desagrado do próprio Lula.

Nos últimos dias, vídeos e textos de tom semelhante —ressaltando sacrifícios dos militares e negando privilégios, mas sem a contraposição com civis— circularam entre militares de todas as patentes.

“Há resistência ao pacote porque as Forças Armadas e a profissão militar já estão muito desprestigiadas. Nos bons colégios do Rio, você não vai encontrar quem queira ser militar, porque os atrativos são cada vez menores em comparação com outras atividades”, afirma o almirante da reserva Eduardo Leal Ferreira, ex-comandante da Marinha (2015-2019) e ex-presidente do Conselho de Administração da Petrobras (2019-2022).

“Precisamos repensar o papel das Forças Armadas e valorizá-las. O problema de Essequibo é uma realidade que nos mostra a importância disso”, diz, em referência à crise entre Venezuela e Guiana que suscitou temores de uma guerra em nossas fronteiras.

Na cruzada para minimizar os efeitos dos cortes, as Forças Armadas afirmam que a evasão na carreira é crescente. Segundo o Exército, desde 2015, 1.234 deixaram a corporação antes de terem completado tempo para a inatividade, “buscando oportunidades em outras carreiras” —as maiores baixas se deram em 2022 (315) e 2023 (346).

“É importante que a carreira seja atrativa, em relação ao salário e à proteção social, a fim de que sejam conquistados e mantidos talentos do mais alto nível, para o cumprimento da missão indelegável de defesa da pátria”, declarou o Exército por meio de nota.

Mexer na proteção social dos militares —que gozam de benefícios e particularidades inerentes à carreira e cujo déficit per capita previdenciário é bem mais alto do que o do setor privado e o de servidores civis— é historicamente um vespeiro para políticos.

Desde a redemocratização, o presidente que os integrantes das Forças Armadas mais deploram é Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que em 2001 extinguiu a pensão vitalícia para filhas de militares (o passivo segue sendo pago), a promoção automática de quem passa à reserva, o auxílio-moradia e o adicional de inatividade, entre outros penduricalhos.

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