Mídia Ninja usa ONGs para receber verba do governo Lula e ganha espaço na Cultura

Movimento de ativistas afirma publicamente que não recebe recursos públicos, mas criou entidades como ‘base jurídica e institucional’ e que já foram contempladas com R$ 4 milhões no atual governo; ONGs afirmam que não falam pelo Mídia Ninja e Ministério da Cultura diz que seguiu critérios estabelecidos em portaria que determinava a seleção representantes da sociedade civil

A Mídia Ninja, uma rede de comunicação ligada à esquerda, tem usado ONGs para receber repasses do governo federal enquanto afirma publicamente não ser bancada com dinheiro público. Duas entidades diretamente ligadas ao grupo, e cujos representantes têm atuação no Ministério da Cultura, obtiveram R$ 4 milhões em convênios, emendas parlamentares e lei de incentivo durante o atual mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Liderado pelo ativista Pablo Capilé, a Mídia Ninja apoiou Lula oficialmente à presidência, em 2022. Fez campanha para “virar votos” e, ao anunciar a vitória do petista sobre o então presidente Jair Bolsonaro (PL), escreveu “vencemos” em uma publicação.

Procuradas, as entidades negam ter sido escolhidas por seu vínculo político com o governo e dizem ser apenas parceiras da Mídia Ninja, sem poder falar pelo movimento (leia mais abaixo). As páginas oficiais do movimento Ninja somam quase 7 milhões de seguidores nas principais redes sociais (4,6 milhões no Instagram, 1,2 milhão no YouTube e 1 milhão no X).

O cientista político e professor do Insper Leandro Consentino avalia que a absorção das militâncias digitais por campanhas é uma tendência na política, mas o pagamento indireto a movimentos precisa ser visto como ponto de atenção.

“Há questionamentos importante, com relação à legitimidade. Primeiro, quanto à natureza desse movimento que diz não receber verbas públicas, mas que recebe colateralmente. Isso é um ponto de atenção importante, de entender a natureza jurídica e os objetivos desse movimento”, pontuou.

Consentino também disse considerar importante que fique clara a relação entre o recebimento de verbas e o apoio a um governo, de esquerda ou direita. “Se o recurso vai para uma ONG que tem como função enaltecer o próprio partido do governo, começa a ter um problema do ponto de vista da competição política e eleitoral”, disse.

No site oficial, a Mídia Ninja afirma não ser bancado por verba pública e critica os “veículos de comunicação corporativos” que “sobrevivem às custas de altos investimentos públicos”. Entretanto, seus cofundadores dirigem organizações não governamentais que recebem dinheiro do governo.

O movimento não tem personalidade jurídica própria, mas financia seus projetos por meio de duas ONGs nos nomes de seus fundadores. Elas já ganharam R$ 1,6 milhão desde 2023. Há, ainda, mais R$ 2,4 milhões previstos por meio de incentivos e convênios assinados ou pré-acordados por elas com o Ministério da Cultura e com o Ministério da Justiça, por meio do Fundo de Defesa de Direitos Difusos.

Além disso, o presidente de uma delas foi autorizado a captar R$ 985 mil por meio da Lei Rouanet. Ele diz não ter conseguido captar os recursos.

Os principais projetos financiados com verba pública levam o nome “Ninja” ou têm seções próprias dentro do site oficial do movimento. Em notas enviadas pela mesma assessoria de imprensa, as entidades afirmaram que não falam em nome da Mídia Ninja, mas relataram uma “relação natural de apoio executivo e institucional” porque o movimento é “uma rede de comunicação livre” formada por “diferentes produtores e gestores culturais”.

A principal contemplada é a Associação Coletivo Cultural, com R$ 3,4 milhões. Uma parte da verba, R$ 296 mil, partiu de convênio com a Fundação Nacional de Artes (Funarte), ligada ao MinC. O líder da ONG, Talles Pereira Lopes, e a conselheira fiscal, Karla Kristina Oliveira Martins, são fundadores da Mídia Ninja e fizeram parte de colegiados da Funarte que atuaram na escolha de projetos na época em que a organização deles foi contemplada.

Além deles, a entidade tem em seu quadro outros três fundadores e dirigentes do movimento: Clayton Nobre, Dríade Aguiar e Irlana Cassini.

Um dos documentos apresentados pela ONG ao governo demonstra que a relação dela com a Mídia Ninja é mais do que de “apoio”. O texto diz que a associação foi criada em 2012 para “oferecer uma base jurídica e institucional para os projetos da rede cultural Fora do Eixo e Mídia Ninja”.

O ministério afirmou, por meio de nota, que seguiu critérios estabelecidos em uma portaria que determinava a seleção de dez representantes da sociedade civil “com reconhecida atuação no segmento artístico”, sendo pelo menos um de cada região do País. Também foram considerados elementos de diversidade territorial, étnico-racial, de gênero e de atuação.

Talles Lopes participou da “comissão de seleção do Programa de Ações Continuadas 2023 – Espaços Artísticos”. Karla Martins foi da comissão “Funarte Retomada 2023 – Teatro”. A escolha da ONG Coletivo Cultural não passou por essas comissões, mas Lopes tem acesso a outros setores do ministério.

Em dezembro, ele participou de uma reunião da Funarte sobre o programa Rede Música Brasil, criado em 2009, no primeiro governo Lula, e que está sendo reeditado. No encontro, assumiu posição de líder da iniciativa e fez sugestões, como a definição de critérios de participação antes da criação de um CNPJ. Também ficou incumbido de elaborar um documento com uma proposta.

A Mídia Ninja é uma rede formada por ativistas de esquerda e sites alternativos alinhados ao governo Lula que ganhou proeminência em 2013 por sua cobertura das manifestações de junho daquele ano. Na época, eles se apresentavam como independentes de interesses políticos e econômicos, mas depois assumiram abertamente posição favorável às gestões petistas. Oficialmente, afirmam defender “diálogo suprapartidário”.

Karla Martins é coordenadora da Casa Ninja Amazônia, um braço da Mídia Ninja dedicado ao ativismo ambiental. O grupo se organiza em torno de iniciativas chamadas Fora do Eixo e Rede Livre.

Talles Lopes e Karla Martins foram anunciados como membros de comissões da Funarte no fim de dezembro de 2023. Cerca de duas semanas depois, a ONG deles firmou o convênio com a própria Fundação. O objetivo era a realização do projeto “SOM de Minas”, que seria uma série de oficinas e palestras de formação para músicos e produtores de Minas Gerais. Os recursos foram garantidos com emenda do deputado Rogério Correia (PT-MG).

No processo administrativo que resultou no termo de fomento com a Funarte constam pareceres técnicos contrários à assinatura do contrato.

O primeiro deles rejeitou a proposta por não apresentar “aderência à missão institucional da Funarte” e recomendou o registro de impedimento técnico do projeto. As primeiras avaliações negativas de servidores foram feitas em junho de 2023 e convertidas em pareceres condicionados, que exigiam da ONG Coletivo Cultural o saneamento dos problemas encontrados para aprovar a assinatura do convênio. Somente em 18 de dezembro daquele ano, quando Talles e Karla Kristina já estavam nos comitês da Funarte, foi emitido um parecer favorável. Dez dias depois, o contrato foi assinado.

Procurado, o MinC lembrou que o convênio teve origem em emenda parlamentar impositiva, o que obrigou o repasse a ser feito. “De acordo com a Emenda Constitucional 86/2015, a execução das emendas individuais é obrigatória, salvo em casos de impedimento técnico insuperável. Quem elege os beneficiários de suas emendas são os próprios parlamentares.”

A Coletivo Cultural assinou outros dois convênios com a pasta para realizar oficinas de capacitação de músicos: um de R$ 500 mil com a Secretaria de Incentivo e Fomento à Cultura e outro R$ 250 mil com a Secretaria dos Comitês de Cultura. Este último departamento foi aparelhado por filiados ao PT e chegou a assinar contratos com ONGs de assessores do próprio ministério e de militantes do partido, conforme revelou o Estadão.

Além disso, em dezembro do ano passado, Lopes foi autorizado a captar R$ 985 mil por meio da Lei Rouanet – o instrumento permite que empresas privadas deduzam do imposto pago à União valores gastos em patrocínios de iniciativas culturais chanceladas pelo governo. Ele diz não ter conseguido captar os recursos.

A verba seria destinada ao “Circuito Mineiro de Festivais”. O projeto consiste em uma série de cursos e apresentações musicais realizadas por três dias no interior de Minas Gerais.

Em paralelo, outra ONG que funciona como braço da Mídia Ninja conseguiu R$ 599,9 mil do Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDD), gerido pelo Ministério da Justiça e que tem uma assessora especial da ministra da Cultura como integrante de seu Conselho Gestor.

A Associação de Produtores e Gestores Independentes de Cubo Card é presidida por Marielle Ramires Pinto, cofundadora do Fora do Eixo e da Mídia Ninja. É a primeira vez que a entidade recebe verba do governo federal, segundo o Portal da Transparência. O pagamento foi realizado em 30 de dezembro de 2024.

“Cubo card” é o nome de uma espécie de moeda social criada por esses movimentos e com a qual artistas são remunerados pelos seus trabalhos. Em locais geridos pelo Fora do Eixo é possível trocá-los por produtos de necessidade básica, mas não são aceitos fora dali. O sistema já foi criticado por diversos artistas que atuaram junto a Mídia Ninja e se queixaram da falta de pagamento em dinheiro real.

A ONG garantiu que “todas as remunerações serão feitas em reais, seguindo padrões de mercado, com isonomia e clareza na prestação de contas”.

O convênio com a Associação dos Cubo Cards prevê a “realização de um circuito de formação em Comunicação e Direitos Humanos” para “conscientização, trocas de saberes e narrativas a partir de temas enfocados na formação cidadã, cultural e técnico-profissional de jovens e mulheres de periferias urbanas”. O projeto da ONG foi batizado de “Circuito Ninja Cerrado de Formação”.

Conforme o plano de trabalho apresentado, são previstas bolsas de R$ 300 para 150 jovens negros, negras e quilombolas, a um custo total de R$ 45 mil. Os outros R$ 554 mil servirão para assessores, coordenadores, oficineiros, designers, produtores e despesas com combustível. Os pagamentos aos coordenadores chegam a R$ 9,1 mil.

A associação afirmou em nota que é parceira da Mídia Ninja, mas que não pode falar em nome do movimento, que não se manifestou.

A reportagem também pediu manifestação ao Ministério da Justiça. Em nota, a pasta disse que todas as entidades foram escolhidas por meio de chamamento público em julho de 2023 que contemplou 42 projetos, dos quais 19 foram formalizados até dezembro de 2024. O restante será oficializado após a aprovação da Lei Orçamentária de 2025.

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