Por David Agape
Relatório documenta os abusos e ilegalidades do inquérito que se tornou o principal instrumento de repressão política no país
Hoje, completam-se seis anos desde a instauração do Inquérito 4.781, conhecido como Inquérito das Fake News. Embora atualmente esse evento não receba a devida atenção, no futuro ele será lembrado como o marco inaugural da juristocracia brasileira — um regime no qual o Poder Judiciário não apenas interpreta a Constituição, mas a redefine conforme seus próprios interesses, assumindo funções típicas do Legislativo e do Executivo sem qualquer tipo de controle.
Um relatório inédito, que produzi para o Institute for the Freedom of Press and Expression Brasil (IFPE) e que foi enviado a Pedro Vaca, líder da comitiva da Organização dos Estados Americanos (OEA) no Brasil, demonstra que esse inquérito foi o ponto de partida para uma série de outras investigações semelhantes. Hoje, dezenas de inquéritos derivados repetem as mesmas ilegalidades do original, consolidando um sistema no qual o Supremo Tribunal Federal (STF) concentra poderes sem precedentes e age sem nenhum mecanismo de controle externo.
Instrumento de poder
Ao contrário do que muitos pensam, o Inquérito das Fake News não foi criado para perseguir apoiadores de Bolsonaro. Sua origem remonta a março de 2019, quando foi instaurado pelo então presidente do STF, Dias Toffoli, sob a justificativa de combater fake news e ataques de integrantes e apoiadores da Operação Lava Jato contra ministros da Corte. No ato inaugural do inquérito, Toffoli designou Alexandre de Moraes como relator, sem sorteio, e concedeu a ele poder irrestrito para conduzir as investigações. Apenas posteriormente, cerca de um ano depois da abertura, o inquérito ilegal foi redirecionado para a perseguição de Bolsonaro e seus apoiadores.
Desde então, o inquérito passou por uma expansão descontrolada, dando origem ao Inquérito das Milícias Digitais, ao Inquérito dos Atos Antidemocráticos e aos inquéritos relacionados aos atos de 8 de janeiro, entre muitos outros. Todos seguem um padrão semelhante de irregularidades processuais e abuso de poder, consolidando um sistema de perseguição política e censura institucionalizada.
Embora os ministros do STF aleguem que esses inquéritos foram instaurados para defender a democracia, uma análise aprofundada das suas origens revela que eles têm servido essencialmente para blindar a cúpula do Judiciário contra críticas e investigações, restringindo a liberdade de expressão e transformando o sistema judicial em um instrumento de repressão seletiva e controle de informação. Além disso, são empregados desde o início como instrumentos para perseguir adversários políticos e censurar vozes dissidentes. Para isso, o STF adotou táticas de lawfare, transformando o sistema judicial em um meio de repressão seletiva.
Ilegalidades
Nossa equipe categorizou as ilegalidades dos Inquéritos das Fake News e das Milícias Digitais em três grupos principais. Essa divisão permite compreender tanto os problemas específicos quanto seus impactos no sistema jurídico e democrático do Brasil. Abaixo, apresenta-se cada grupo de forma sucinta:
1- Ilegalidades Processuais
Esse grupo abrange violações às normas e princípios que regem a condução de investigações e julgamentos no sistema jurídico brasileiro. Aqui, destacam-se problemas relacionados à forma como os inquéritos foram instaurados, conduzidos e ampliados. Entre as ilegalidades estão:
- A instauração de inquéritos de ofício pelo STF, sem provocação do Ministério Público, violando o princípio acusatório.
- Designação direta do relator sem sorteio, desrespeitando o princípio do juiz natural.
- Concentração de funções de investigar, acusar e julgar em um único ministro, comprometendo a imparcialidade.
- Escopo abrangente e indefinido das investigações, permitindo adições arbitrárias de novos temas e alvos sem justificativa específica.
- Prorrogações indefinidas dos inquéritos, sem limites temporais claros.
- Investigadores selecionados pelo julgador, comprometendo a imparcialidade.
- O inquérito viola o próprio Regimento Interno do STF, usado como base para a sua instauração.
2- Violações de Direitos Fundamentais
Este grupo diz respeito às ilicitudes do inquérito que atingem direitos e garantias individuais assegurados pela Constituição Federal. As principais violações incluem:
- Censura prévia a jornalistas e veículos de mídia, como ocorreu com Crusoé e O Antagonista.
- Bloqueio de perfis inteiros em redes sociais (censura prévia) e remoção de conteúdos sem justificativas claras, comprometendo a liberdade de expressão.
- Negação de acesso de advogados aos autos dos inquéritos, violando o direito de defesa.
- Perseguição seletiva a críticos políticos e opositores, reforçando a percepção de uso político do Judiciário.
3- Abusos de Poder e Concentração de Competências
O terceiro grupo aborda o uso desproporcional ou arbitrário de poder pelo STF e seus ministros, com impactos diretos no equilíbrio entre os poderes da República. Entre as questões identificadas estão:
- A centralização de investigações e decisões em um único ministro, sob o conceito de “prevenção”, que compromete a colegialidade.
- A investigação de pessoas sem prerrogativa de foro no STF, extrapolando sua competência.
- Sigilo excessivo imposto ao inquérito, dificultando a fiscalização e o controle externo.
- Ausência de controle externo eficaz por parte de instituições como o Ministério Público, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Senado Federal.
Impunidade
Além de reunir os papéis de vítima, investigador, acusador e julgador em um só órgão, o inquérito viola princípios fundamentais do Estado de Direito, como o devido processo legal, o direito à ampla defesa e a proibição de censura prévia. Mesmo diante de flagrantes ilegalidades, nenhuma entidade institucional agiu para interrompê-lo. Nem a OAB, nem o Congresso Nacional, nem os órgãos internacionais de direitos humanos exerceram qualquer resistência concreta, permitindo que essa nova ordem autoritária se consolidasse sem obstáculos.
Há hoje 46 pedidos de impeachment contra ministros do STF à espera de análise no Senado. Até hoje, foram protocolados 130 pedidos de impeachment no Senado, a maioria após o início do Inquérito das Fake News. O principal alvo é Alexandre de Moraes, com 40 pedidos, dos quais 23 seguem pendentes, representando quase metade do total ainda sem resposta. Mesmo diante desse volume recorde, tanto o ex-presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, quanto o atual, Davi Alcolumbre, mantêm a mesma postura: bloquear qualquer avanço sobre os pedidos, garantindo a blindagem da Corte e consolidando o cenário de impunidade e concentração de poder pelo STF.
A complacência com esse modelo de repressão judicial não se deu apenas no meio jurídico. O apoio ou silêncio de boa parte da imprensa e da comunidade acadêmica foi essencial para a consolidação desse poder arbitrário. Antes amplamente criticado, o inquérito passou a ser relativizado e até defendido por alguns dos seus antigos opositores, desde que suas ações passaram a atingir alvos políticos específicos.
Hoje, as consequências desse processo são evidentes. O STF deixou de ser um tribunal constitucional e se tornou um órgão político, que concentra e expande seus próprios poderes sem qualquer controle externo. A liberdade de expressão se tornou condicional, sujeita ao julgamento de uma única Corte. O sistema de freios e contrapesos, pilar da democracia, foi minado sem resistência institucional significativa.
Inquérito do fim do mundo infinito
Seis anos depois, o Inquérito das Fake News permanece em andamento, sem previsão de encerramento. Um levantamento feito pelo advogado Hugo Freitas para o IFPE demonstra que este inquérito serviu de modelo para outros inquéritos igualmente questionáveis, como o Inquérito das Milícias Digitais e o Inquérito dos Atos Antidemocráticos, além dos inquéritos para investigar os atos de 8 de janeiro. Hoje, pelo menos 16 inquéritos estão sob a relatoria de Alexandre de Moraes, mas, na prática, trata-se de um único grande inquérito desmembrado em múltiplas frentes, ampliando seu escopo e duração indefinida.

Segundo Freitas, pode-se dizer que esses diversos inquéritos não passam de desdobramentos de um único Inquérito do Fim do Mundo, formando uma grande árvore envenenada, em que o Inquérito 4.781 é o tronco e os demais, seus galhos. Todo o processo se desenrola sem que em nenhuma etapa tenha ocorrido sorteio, procedimento essencial para a garantia do devido processo legal, entre diversas outras ilegalidades endêmicas.
Se o Brasil pretende reverter esse quadro, é fundamental buscar responsabilização dos envolvidos. A impunidade não pode ser a regra, principalmente quando o abuso de poder parte daqueles que deveriam zelar pela ordem constitucional. A história mostra que regimes autoritários não surgem de um dia para o outro, mas se consolidam gradualmente, aproveitando-se da inércia de seus opositores. O Inquérito das Fake News, ao completar seis anos, simboliza esse processo—e seu desfecho determinará os rumos da democracia brasileira.
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