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Conteúdo das reportagens gera debate sobre possível nulidade do acordo de delação do ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro
Na semana passada, em duas reportagens, na capa da revista e no site da publicação, VEJA revelou que Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, havia usado um perfil falso do Instagram para se comunicar com um interlocutor do círculo próximo ao ex-presidente. Dias antes, ao ser interrogado no Supremo, ele havia garantido que isso jamais tinha acontecido. Se falasse a verdade naquela hora, poderia se enrolar ainda mais. Em seu acordo de colaboração com a Justiça, o tenente-coronel se comprometeu a manter em segredo o teor de suas revelações, não ter contato com outros investigados e não usar redes sociais. Os diálogos revelados pelas reportagens mostravam que o oficial do Exército não só violou as regras do acordo como também mentiu ao ministro Alexandre de Moraes — transgressões graves e com potencial de resultar na anulação de sua delação premiada e até em um mandado de prisão. Numa tentativa de conter danos, a defesa do militar sustentou que as mensagens publicadas eram falsas e pediu a abertura de uma investigação para descobrir a identidade do dono do perfil utilizado para difundir os diálogos. Convocado na sequência a prestar depoimento à Polícia Federal, Cid repetiu o que já havia dito antes. A versão dele seria desmentida mais uma vez.
Na segunda-feira 16, o advogado Luiz Eduardo Kuntz anexou ao processo que tramita no STF um documento contendo diálogos, fotos e áudios postados por Mauro Cid entre janeiro e março de 2024 e admitiu ser ele o interlocutor das mensagens trocadas com o tenente-coronel. As conversas se deram por meio do perfil @gabrielar702, o mesmo que o ex-ajudante de ordens jurou desconhecer ao ser interrogado por Alexandre de Moraes. O advogado relatou ter sido procurado pelo militar por meio do Instagram. De início, conta, pensou que o objetivo era contratar os seus serviços. Depois, desconfiado de que poderia estar sendo alvo de uma “ação controlada”, decidiu armazenar os diálogos, inclusive as conversas mantidas pelo telefone e os áudios trocados no aplicativo. Kuntz, além de amigo de Cid, defende o coronel Marcelo Câmara, ex-auxiliar de Jair Bolsonaro e um dos acusados no processo sobre a suposta tentativa de golpe de Estado. “Destaque-se que foi tomado o cuidado de prosseguir com a conversa por escrito, de forma a não perder nada do conteúdo e, eventualmente, me defender deixando claro que foi ele quem me procurou e não o contrário”, ressaltou o criminalista.
A identificação do interlocutor fulminou a tese da defesa de Mauro Cid de que as mensagens publicadas por VEJA se resumiam a “miseráveis fake news” — e gerou uma reação do STF. Na quarta-feira 18, Moraes decretou a prisão preventiva de Marcelo Câmara e determinou que fosse aberta uma investigação para apurar o envolvimento do seu advogado em uma suposta tentativa de obstrução da Justiça. Segundo o ministro, o fato de Kuntz manter contato com Cid, incluindo um encontro presencial em uma hípica em Brasília, indica que o militar tentou obter informações confidenciais sobre o teor da delação do ex-ajudante de ordens, o que é crime. “São gravíssimas as condutas noticiadas nos autos, indicando, neste momento, a possível tentativa de obstrução da investigação, que transbordou ilicitamente das obrigações legais de advogado”, escreveu Moraes. O magistrado também considerou que o coronel, acusado de integrar o grupo que monitorava clandestinamente autoridades, descumpriu medidas determinadas pelo Supremo, já que, desde que foi autorizado a responder ao processo em liberdade, estava proibido de se comunicar com outros investigados, inclusive utilizando intermediários, como o advogado. Nesse ponto, há uma informação conflitante. A proibição imposta por Moraes é de maio do ano passado. Quando Cid e Kuntz conversaram, entre janeiro e março de 2024, não havia tais restrições. Nomeado pela OAB para defender Kuntz, Renato Marques Martins disse, em nota, que a instauração de inquérito é “abusiva” e afirmou que a captação das conversas com o delator é uma estratégia legítima para apurar a veracidade das acusações que recaem contra o cliente dele.
No material apresentado ao STF por Luiz Eduardo Kuntz, há uma selfie que o delator enviou para confirmar que era ele mesmo quem estava usando o falso perfil. As mensagens também trazem confidências de passagens de que somente o tenente-coronel tinha conhecimento, especialmente sobre os depoimentos que, na época, ele estava prestando à polícia já na condição de colaborador. O fato de o criminalista representar um dos acusados tornou a transgressão do ex-ajudante de ordens ainda mais grave. Nas mensagens, Cid fornece ao advogado detalhes sobre o que estava revelando em seu acordo de delação e transmite impressões a respeito da linha de investigação que os delegados estavam seguindo. “Eles (os policiais) já têm o final da história. Agora têm que construir o caminho”, diz uma das mensagens. Cid também faz uma série de inconfidências. Ele conta, por exemplo, que soube por meio do comandante do Exército, general Tomás Paiva, que Alexandre de Moraes cultivaria “raiva e ódio” pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, que teria acabado com “a vida dele”. A informação teria sido repassada pelo comandante ao seu pai, o também general Lourena Cid.
Em outro diálogo, o tenente-coronel se mostra irritado com a quantidade e o teor de entrevistas que seu advogado, Cezar Bitencourt, concedia na época. “Ele estava dando porrada no PR (Presidente da República)… Uma delas falou que o PR era golpista”, reclama. O interlocutor pergunta então por que ele não troca de advogado. “Ele é muito respeitado”, justifica o delator. “E senta com AM (Alexandre de Moraes)… Por isso não voltei para cadeia”, acrescenta. Kuntz pede então que Cid faça chegar a Bitencourt a informação de que seu cliente, Marcelo Câmara, não fez nada de errado. Cid então pondera: “A equipe dele toda é Bolsonaro… Menos ele (Bitencourt)”. No documento que apresentou ao Supremo, o advogado destacou que o material é parte de uma investigação defensiva criminal. “É possível verificar que o malfadado acordo de colaboração premiada firmado com o TC Cid não pode e nem deve prosperar e, assim sendo, toda a sua prova derivada também deve ser imediatamente desconsiderada”, escreveu.
Por estar praticamente 24 horas por dia ao lado de Jair Bolsonaro, Cid sempre foi considerado peça-chave para que se desvendasse o papel do ex-presidente e de antigos integrantes da cúpula militar na orquestração do plano para anular o resultado das eleições de 2022. Partiram de seus depoimentos, por exemplo, capítulos cruciais do enredo golpista, como a revelação de que, nos estertores do governo, Bolsonaro se reuniu com expoentes das Forças Armadas para discutir medidas que pudessem garantir sua permanência no poder e de que o ex-assessor Filipe Martins redigiu o decreto que determinava a prisão de autoridades tidas como desafetos do governo. Também foi Cid quem pela primeira vez disse que Bolsonaro pressionou pela alteração do relatório do Ministério da Defesa que atestara não ter havido fraude nas urnas eletrônicas e que o então comandante da Marinha, Almir Garnier, teria colocado “as tropas à disposição” do então presidente para uma intentona golpista.
Com o avanço das apurações, a Polícia Federal conseguiu corroborar com provas apreendidas e depoimento de testemunhas o viés golpista da reunião com os militares relatada por Cid, a intenção de integrantes do governo de promover uma virada de mesa nas eleições e o papel de boa parte dos réus que estão prestes a ser julgados pelo Supremo. “A confissão já foi a rainha das provas, a que tinha valor mais alto, mas hoje documentos e perícias são as mais importantes, seguidos das testemunhas, que prestam juramento de falar a verdade, dos réus em interrogatório e, só por último, do colaborador”, afirma Pierpaolo Bottini, professor de direito penal da USP.
Às vésperas do julgamento que pode impor até quarenta anos de prisão a Bolsonaro e a militares de alta patente por crimes como golpe e tentativa de abolição do estado democrático de direito, os advogados dos réus miram no que consideram uma das melhores estratégias para amenizar a situação dos seus clientes: anular ou no mínimo desqualificar a delação de Mauro Cid. Ao aceitar o acordo de colaboração, ele assinou um termo de confidencialidade no qual se comprometia a manter silêncio absoluto sobre as revelações que faria aos investigadores em troca de uma pena que não ultrapassasse dois anos de cadeia. O ex-ajudante de ordens concordou que “as partes signatárias se comprometem a preservar o sigilo do presente acordo de colaboração premiada e de seus anexos perante qualquer autoridade, enquanto o juízo competente entender que a publicidade prejudicará a efetividade das investigações”. Em outra cláusula, ratificou que sua colaboração seria derrubada no caso de ele “mentir ou omitir, total ou parcialmente, em relação a fatos ilícitos que praticou, participou ou tem conhecimento” ou se “o sigilo a respeito deste acordo de colaboração premiada for quebrado por parte do colaborador”. Mais do que uma formalidade, o sigilo a que os delatores estão submetidos e a obrigatoriedade de dizer a verdade servem para garantir que a polícia possa avançar nas investigações, rastrear provas e evitar que possíveis delatados se articulem para coagir testemunhas ou destruir evidências.
Nos últimos dias, Moraes negou os pedidos dos advogados de Bolsonaro que pleiteavam que o acordo de delação fosse anulado, com o argumento de que ele é “impertinente” ao atual momento do processo. Juristas avaliam que a decisão do ministro de manter o acordo embute uma certa estratégia. Moraes estaria aguardando a produção de provas extras que foram solicitadas pelas defesas, como uma acareação já autorizada por ele entre Cid e o general Braga Netto — preso há meses por tentar acessar o conteúdo da colaboração do tenente-coronel —, para definir, no momento da sentença, se fará alguma mudança em relação ao futuro do delator. “O que em geral acontece em casos de rescisão é a Justiça fazer uma análise de proporcionalidade. Identifica-se aquela mentira ou aquela omissão e verifica-se quanto ela impacta no conjunto do acordo. O resultado sai na hora de dar os benefícios ao colaborador, no fim do processo”, explica Bottini. Mesmo na hipótese de uma decisão extrema, a de anulação do acordo, o processo segue repleto de provas a respeito de uma conspiração que começa com a tentativa de desacreditar o sistema eleitoral e culmina com a movimentação para virar o resultado do pleito e os atos de 8 de janeiro. O necessário acerto de contas está sendo feito no processo em curso no STF — que as penas recaiam também a quem mentiu, tentou manipular ou agiu para tumultuar as peças desse processo histórico.
Crédito Veja