André Mendonça citou jurista que defende direito de expressar desconfiança sobre urnas e defendeu regulação das redes pelo Congresso.
O ministro André Mendonça iniciou nesta quarta-feira (4) a leitura de seu voto no julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que poderá acabar com o artigo 19 do Marco Civil da Internet. O dispositivo assegura a liberdade de expressão nas redes sociais, ao prever que elas só sejam punidas por conteúdo postado por usuários se descumprirem decisão judicial que considere a publicação ilícita e ordene sua retirada.
Se o artigo cair, as empresas de tecnologia tendem a remover postagens em massa relacionadas a assuntos polêmicos, por temor de serem punidas com multas. No ano passado, quando começou o julgamento, os ministros Dias Toffoli e Luiz Fux votaram pela inconstitucionalidade da norma; Luís Roberto Barroso, pela extinção parcial.
Na sessão desta quarta (4), Mendonça não concluiu o voto, mas apresentou suas premissas, com uma defesa mais enfática da liberdade de expressão e críticas indiretas a iniciativas de colegas do próprio STF que tentam controlar o que trafega nas redes sociais.
O voto será concluído na sessão desta quinta (5), quando ele vai se posicionar pela manutenção ou extinção do artigo 19. Depois, votarão os demais ministros: Flávio Dino, Cristiano Zanin, Kassio Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes – é provável que esses só votem na semana que vem.
Em seu voto, nesta quarta, Mendonça defendeu que o Congresso é a instituição mais apropriada para regulamentar o ambiente digital e afirmou que o Judiciário deveria adotar uma “postura autocontida”.
“Ao assumir maior protagonismo em questões que deveriam ser objeto de deliberação pelo Congresso Nacional, o Poder Judiciário acaba contribuindo, ainda que não intencionalmente, para a agudização da sensação de desconfiança hoje verificada em parcela significativa da sociedade. É preciso quebrar esse ciclo vicioso”, disse, em referência às crescentes críticas sobre o ativismo do STF no tema.
“Não se trata de fazer da opinião pública um critério de julgamento. O que se busca apontar, apenas, são os efeitos deletérios que decorrem da adoção de uma postura ativista, a qual, no presente caso, culmina por agudizar ainda mais o problema que se pretende combater”, afirmou Mendonça.
Desde 2019, com a abertura do inquérito das fake news, o STF tem promovido a censura de críticos do tribunal, com bloqueio de perfis e contas em redes sociais, corte da remuneração de criadores de conteúdo e até suspensão de plataformas inteiras – caso do X (antigo Twitter), no ano passado, e do Rumble, que deixou de operar no Brasil.
As decisões, proferidas por Alexandre de Moraes e defendidas pela maioria dos ministros, citam que mentiras disseminadas nas redes contra a Corte afetam a honra dos ministros e representam um “ataque” às instituições e à democracia.
Em diversos trechos de seus votos, Mendonça defendeu o direito de cidadãos desconfiarem das instituições, e terem liberdade para expressar seus pensamentos, como parte do regime democrático.
Num dos trechos, citou um autor que defende a desconfiança sobre as urnas eletrônicas – desde 2021, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o STF têm punido pessoas que manifestam dúvidas sobre o sistema de votação, com o argumento de que são baseadas em falsidades, afetam a normalidade do processo eleitoral e buscam a ruptura da democracia, com a contestação dos resultados apurados pelo TSE.
Mendonça citou obra recente do promotor e jurista Samuel Fonteles sobre o direito à antipatia e à incredulidade e o dever da tolerância. “Outro exemplo é o direito à incredulidade, igualmente protegido pela Constituição. A Justiça Eleitoral brasileira é confiável e digna de orgulho. Se, apesar disso, um cidadão brasileiro vier a desconfiar dela, este é um direito. No Brasil, é lícito duvidar da existência de Deus, de que o Homem foi à lua e também das instituições”, citou Mendonça.
“A partir do momento em que um povo é proibido de até mesmo desconfiar – ou é obrigado a acreditar -, instaura-se o ambiente perfeito para subjugá-lo pela sua impotência. Pois bem, embora a dúvida incredulidade constitua um direito, é certo que não será tarefa simples tolerar a sua fruição, muito pelo contrário. Se um indivíduo, hoje, brada em uma praça pública a frase ‘não confio nas eleições’, o conteúdo despertará a mais genuína antipatia em todos aqueles que acreditam na lisura do pleito eleitoral”, disse Mendonça, novamente citando Fonteles.
André Mendonça defende ampla liberdade de expressão em voto
Em várias partes do voto, Mendonça defendeu o valor da liberdade de expressão numa democracia. “A liberdade de expressão possui posição preferencial. Primeiro, porque é meio indispensável para a defesa das demais liberdades e direitos fundamentais. Segundo, porque a liberdade de expressão é condição de possibilidade do Estado de Direito Democrático, na medida em que apenas uma sociedade na qual o cidadão seja livre para expressar sua vontade, sem receio de reprimenda estatal, se pode falar em soberania popular”, afirmou o ministro.
“Mais do que um direito individual, a liberdade de expressão tem uma dimensão coletiva, tendo em vista que sua conservação aproveita não apenas à pessoa individualmente considerada, mas toda a sociedade, que tem pelo canal da livre manifestação de ideias e pensamentos, assegurado o acesso à informação”, afirmou, em outra parte do voto.
Em outro trecho, citou a defesa da tolerância pelo filósofo português Desidério Murcho, para quem esse valor pressupõe a convivência com ideias divergentes. “Ser tolerante é aceitar o direito de alguém afirmar o que pensamos firmemente ser falso ou errado ou inaceitável ou ofensivo […] Ser tolerante é defender as pessoas que têm ideias falsas, idiotas ou inaceitáveis e atacar essas ideias; não é atacar as pessoas para evitar o incômodo de provar que as suas ideias são falsas”, citou o ministro.
Mendonça também apresentou reflexões sobre o fenômeno das notícias falsas, que ganharam dimensão muito maior com a popularização das redes sociais. O ministro citou pensadores e pesquisadores que entendem que as “fake news” não teriam o potencial de mudar a opinião das pessoas sobre determinado assunto, induzindo-as ao erro, mas apenas reforçar crenças que já possuem. Elas teriam ganhado mais força em razão da “baixa credibilidade em relação às instituições públicas em geral”.
Citou ainda pesquisas segundo as quais elas teriam alcance “limitado e circunscrito a determinado público”, “não conseguiriam alterar a opinião do indivíduo sobre determinado assunto” e estão sujeitas “a checagem de fatos pelos próprios usuários que façam parte do espectro político-ideológico contrário”.
“Tais características afastariam a ideia de que os usuários das plataformas digitais seriam ‘vítimas indefesas’ das manipulações promovidas pelos algoritmos desses provedores de conexão e aplicativos de internet”, afirmou, acrescentando que as plataformas identificam “predileções e predisposições que já trazemos conosco” para direcionar um conteúdo personalizado, conforme as preferências do usuário.
O argumento contrapõe declarações de diversos ministros do STF que condenam uma suposta inação das redes sociais para combater desinformação e conteúdos nocivos, para defender uma regulamentação que aumente sua responsabilidade.
Na parte inicial do voto, Mendonça ainda citou estudos que defendem a lógica estabelecida pelo artigo 19 do Marco Civil da Internet, inspirado na legislação americana, por promover “auto-organização social” e a “criatividade tecnológica”. O modelo europeu, já defendido por vários ministros do STF, estabelece, segundo estudos citados por Mendonça, “um sistema de supervisão pública”.
Toffoli, Fux e Barroso defendem regulação mais rígida das redes
No ano passado, os ministros Dias Toffoli, Luiz Fux e Luís Roberto Barroso defenderam uma regulamentação mais rigorosa das redes sociais.
Relator de uma das ações em julgamento, Toffoli propôs que, em caso de ofensas pessoais, as plataformas sejam obrigadas a remover postagens assim que notificadas pelas pessoas ofendidas, e não apenas após ordem judicial.
No caso de postagens que possam configurar uma lista de crimes ou causar danos, a plataforma nem precisaria ser notificada para remover o conteúdo de forma proativa. Seria o caso de racismo, terrorismo, induzimento a suicídio, infração sanitária, violência sexual, entre outros.
O ministro incluiu nesse rol crimes contra o Estado Democrático de Direito e divulgação de “fatos notoriamente inverídicos ou descontextualizados” que possam causar “danos ao equilíbrio do pleito ou à integridade do processo eleitoral” ou possam ameaçar grupos ou membros de grupos socialmente vulneráveis”.
No início do julgamento, defensores das plataformas e de entidades civis criticaram a imposição desses critérios, por considerar que são abertos e suscetíveis de acabarem abarcando críticas legítimas a autoridades, instituições, políticos e comportamentos.
Luiz Fux propôs algo semelhante em seu voto. Barroso, por sua vez, apresentou voto mais ameno, mantendo a previsão de que, no caso de ofensas (calúnia, difamação e injúria), as plataformas só sejam responsabilizadas se desobedecerem uma ordem judicial que determine a remoção.
Em outra parte, impôs às redes o “dever de cuidado”, isto é, a atuação proativa para evitar a publicação de pornografia infantil, bem como de incentivo a suicídio, ao tráfico de pessoas, a atos de terrorismo, a abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado.
Elas só seriam punidas em caso de “falha sistêmica” na remoção desses conteúdos. “Deve-se programar o algoritmo para evitar, mas não se pune caso eventualmente escape algum conteúdo. Mas se vier a notificação extrajudicial, impõe-se a remoção”, propôs Barroso.
No início da sessão desta quarta (4), o ministro rebateu a crítica de que o STF estaria, com o julgamento, substituindo o Congresso na regulação das redes. “Para decidirmos os casos concretos perante o tribunal, nós precisamos estabelecer critérios para o julgamento e, em nome da segurança jurídica, deixar claro quais os deveres que serão exigidos quando novos casos chegarem ao Judiciário”, afirmou, acrescentando que esses critérios só valerão até o momento em que o Congresso legislar sobre o tema. “Aí prevalecerá a lei aprovada pelo Legislativo”, afirmou.
Toffoli, por sua vez, tentou dissipar o temor de aumento da censura. “Não se trata de nenhum julgamento que diga respeito à censura ou tolher liberdade de expressão”, disse. Argumentou que o objetivo do julgamento é estabelecer o momento de responsabilização das redes sociais pelo conteúdo que trafega nas plataformas.
“O artigo 19 trouxe cláusula de não responsabilização no período entre a postagem e a decisão judicial. Se após a liminar venha a determinar a retirada, e a plataforma retira, esse período que pode ser de um ano, dois anos, vinte anos, fica indene. Então a questão é qual o início da responsabilidade civil do dano causado. Hoje, essa responsabilidade só surge quando descumprida a decisão judicial. Se cumprida, não tem que pagar nada”, disse.
Crédito Gazeta do Povo