Além de ameaçar o conceito de família e trazer inovações que colocam em risco a segurança jurídica em diversas áreas do Direito, o projeto de Código Civil do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG) pode ter outro efeito nocivo: dar superpoderes a juízes. Juristas entrevistados pela Gazeta do Povo dizem que o excesso de definições abertas e as contradições internas do documento tendem a delegar aos tribunais uma margem interpretativa perigosa.
Para a civilista Judith Martins-Costa, livre-docente e doutora em Direito pela USP, o projeto de Pacheco, se aprovado, tornaria o excesso de judicialização um mal ainda maior no Brasil.
“É um Código que foi feito para o juiz. Ele não foi feito para o cidadão. Há contradições, erros técnicos e uma quantidade enorme de palavras camaleônicas que são usadas, de conceitos que não são jurídicos”, alerta.
A advogada Katia Magalhães, especialista em responsabilidade civil, vê o projeto como uma transferência perigosa de poder do legislador para os juízes.
O texto repleto de conceitos vagos, segundo ela, amplia de forma excessiva a margem de interpretação do Judiciário e chancela o ativismo judicial. “Está cheio de definições indefinidas – desculpe pelo paradoxo, mas é isso mesmo. Eles trabalham com conceitos amplos, do tipo ‘prosperidade’, ‘melhor interesse social’, ‘função social’… É um código que joga uma enorme margem decisória nas mãos dos juízes”, diz.
Na prática, para Magalhães, o resultado seria uma terceirização da função legislativa, tornando oficial a chamada “juristocracia”, já que o conteúdo das normas passaria a ser moldado pela vontade de cada magistrado. “Isso é um perigo para qualquer tipo de legislação, porque cria um casuísmo incompatível com o próprio conceito de lei. Nesse cenário, nem é necessária a promulgação de um Código Civil, Penal ou o Código que for, porque vai valer tudo o que o juiz quiser.”
Em caso de aprovação do projeto do novo Código Civil, destaca Magalhães, “o juiz não vai mais poder ser acusado de abusador”. “Se aprovado, vai oficializar abusos, na medida em que vai chancelar uma margem muito grande para a discricionariedade. O conteúdo vai ser fluido, elástico. O juiz vai poder dizer: ‘Olha, está assim no código’. Ou seja, o legislador abre mão da própria autonomia, da independência da função de legislar, e a entrega aos juízes dizendo: ‘Façam o que os senhores quiserem'”.
Em vários trechos, o projeto do novo Código Civil dá grande margem à interpretação dos magistrados. Por exemplo, o artigo 421 considera nula a cláusula de um contrato que viole a “função social do contrato”, sem esclarecer o que seria essa função. No Direito de Família, o novo artigo 1.962 permite tirar herança de um filho não só por agressão física, mas também por “ofensa psicológica” ou “abandono afetivo” – expressões sem definição clara, que cada juiz pode interpretar de um jeito.
Venceslau Tavares Costa Filho, professor de Direito Civil da Universidade de Pernambuco, também vê “uma hiperinflação de termos vagos ou indeterminados, de modo a atribuir aos juízes poderes para criar a lei do caso concreto a partir da definição destas expressões”.
“Em vez de contribuir com a autocontenção judicial com a edição de regras com soluções específicas, o projeto na verdade atua no sentido de reforçar o ativismo judicial com este excesso de conceitos indeterminados. E isto só proporciona mais insegurança jurídica e riscos para a sociedade”, afirma ele.
Martins-Costa recorda que “a linguagem jurídica tem que tender a ser o mais certa possível”. “Quando eu falo que o meu devedor está em mora comigo, eu tenho que saber o que é mora, que é um conceito técnico. Todo mundo que estuda sabe quais são os atributos de uma situação para caracterizar uma mora, e isso diminui o risco de litígios. Há uma linguagem compartilhada. Enquanto que, neste caso [do projeto do Código], não há. E isso vai levar a uma judicialização muito grande”, lamenta.