Decepção com Lula 3 ameaça hegemonia petista no Nordeste: ‘Tinha certeza que minha vida ia melhorar, mas não aconteceu’

Preços dos alimentos, “taxa das blusinhas”, a crise do INSS, inexistência de uma nova ação social do peso do Bolsa Família e percepção de mais impostos geram as insatisfações

O morador de Vista Alegre, no Subúrbio Ferroviário da capital baiana, engorda o número de eleitores nordestinos, fortaleza eleitoral petista, que hoje torcem o nariz para o terceiro governo Lula, tendência detectada pelas pesquisas de opinião e reforçada ao GLOBO por dezenas de moradores do maior colégio eleitoral da região. Feitas antes da guinada no discurso do presidente e de aliados sobre a taxação dos mais ricos, as entrevistas revelam a percepção de que o petista se desconectou de quem o elegeu.

Entre as queixas de Cleber estão a falta de ação no escândalo do INSS, a piora na segurança, e a “gastança pública, sem resultado concreto para o povo, bancada pelo aumento de impostos”. A decepção do garçom e da maior parte dos entrevistados é sintetizada pela sensação de que a distância de suas casas para o Palácio do Planalto é hoje muito maior do que era entre 2003 e 2010, quando o mesmo político comandava o país.

— Tinha a crença de que minha vida iria melhorar, como aconteceu nos outros mandatos dele. Mas, nestes dois anos e meio, foi o contrário, meu dinheiro não dá para nada, passo dias à base de remédio para dormir, por conta do tiroteio constante na favela, e só assim consigo trabalhar. E a gente nem o vê, né? Cadê o Lula? Ele sumiu — disse Cleber ao GLOBO.

Na última quarta-feira, poucas semanas após o desabafo, Lula esteve justamente em Salvador, para a Independência baiana, celebrada na mesma data que batiza o bairro onde o garçom trabalha. Estava acompanhado pelo governador Jerônimo Rodrigues, o ministro-chefe da Casa Civil e ex-governador do estado Rui Costa, o ministro da Secom, o baiano Sidônio Palmeira, a ministra da Cultura, Margareth Menezes, e o líder do governo no Senado e primeiro petista eleito para o Palácio de Ondina, Jaques Wagner. O PT comanda a Bahia há 18 anos.

A visita de Lula à capital que lhe deu a maior votação no segundo turno do pleito de 2022 (72% dos votos válidos) foi a primeira desde que sua gestão passou a ser mais rejeitada que aprovada nas pesquisas e que o petista viu sua popularidade despencar no Nordeste. Na região, que garante vantagem expressiva ao PT em pleitos presidenciais há mais de duas décadas, a Genial/Quaest contabilizou queda de 13 pontos percentuais no índice de aprovação do governo entre dezembro e junho, embora o aval a Lula 3 ainda prevaleça (54% a 44%).

Razões para as críticas

As dezenas de baianos que se identificam com o lulismo ouvidos pelo GLOBO apontam, entre as razões de seu desgosto com o terceiro mandato do presidente, o aumento, ainda que anterior à posse do petista, dos preços dos alimentos, a “taxa das blusinhas”, que ceifou-lhes a percepção de maior inclusão social através do consumo, a crise do INSS, com o retorno da associação do PT à corrupção, a inexistência de uma nova ação social do peso do Bolsa Família e a percepção de que se passará a pagar, de forma generalizada, mais impostos, tanto por conta da falsa taxação do Pix quanto do decreto, posteriormente derrubado pelo Congresso e suspenso pelo Supremo Tribunal Federal (STF), de aumento do IOF.

Trocadora de ônibus desempregada e vivendo de um bico de boleira, Giselle Improta, de 37 anos, conta que em Lula não vota mais, por ele não ter cumprido promessas e ter “desaparecido” do seu celular.

— Acreditei que o Bolsa Família iria aumentar, mas o (ministro da Fazenda, Fernando) Haddad só fala em corte de gastos e aumento de impostos. Não voto mais no Lula nem a pau. Cadê ele quando a gente precisou nestes três anos e meio? — reclama.

Pesquisador da PUC-RJ e coautor de um dos capítulos do livro recém-lançado “Governo Lula 3 — Reconstrução democrática e impasses políticos” — organizado pelos professores Fábio Kerche, da Unirio, e Marjorie Marona, da UFMG —, Arthur Ituassu enumera prováveis razões para a insatisfação dos eleitores nordestinos com o atual governo. Entre elas, uma ligada diretamente ao celular de Giselle.

— A organização da insatisfação mudou. Ela hoje é autônoma, difusa e permanente nas redes sociais e demais mídias digitais. Como no caso do Pix, respostas simples para problemas complexos, mesmo se forem mentiras descaradas, são mais palatáveis para o eleitor e exitosas no campo do marketing político — pondera o especialista. — O governo Lula demorou muito para disputar esse campo da comunicação, instituir uma campanha política permanente, assim como faz a oposição.

A pouco mais de um ano do pleito geral do ano que vem, o eleitor lulista de Salvador insatisfeito com o governo não se move de modo uniforme. Muitos se dizem prontos, apesar do pesares, para repetir o voto do presidente, se ele se decidir pela reeleição.

— Sou lulista, mas não sou cego. Olho para o Planalto e de fato não vejo pertencimento. Nem sei se é justo querer que o Lula, aos 79 anos, tenha presença constante nas redes sociais, compre e use um celular, mas poderia ter alguém lá editando, postando, para nos sentirmos parte deste governo, e não só na hora do voto — diz Rafael Cabanãs, de 25 anos.

Resultado eleitorais na região — Foto: Editoria de arte
Resultado eleitorais na região — Foto: Editoria de arte

O gestor comercial de uma clínica de estética da capital baiana frisa que votará novamente em Lula contra qualquer adversário oriundo do campo bolsonarista. Posição bisada por outra eleitora do petista em 2022, a obstetra Bruna Villas Boas, de 28 anos, que trabalha na saúde pública:

— Está puxado, né? Na minha área, seguiram os problemas de gestão e abastecimento, com sucateamento salarial e filas para os pacientes. Mas a sensação é de filme repetido, votarei no Lula de novo para impedir a volta da extrema-direita. Ainda mais depois da vitória de Donald Trump nos Estados Unidos. Repetirei meu voto, ainda que sem entusiasmo.

Distante da esquerda

Pensa parecido o estudante de Medicina da Universidade Federal da Bahia Geraldo Ramos, de 27 anos, que pretende se especializar em cirurgia plástica voltada para pessoas transgênero. Como as colegas de turma Lara Garrido, de 23, e Alana Reis, de 29, ele não enxerga em Lula 3 um governo de esquerda. Mas eles ponderam até mesmo a pertinência de se falar em satisfação com uma gestão sucessora do “desastre de Jair Bolsonaro”:

— Era de se imaginar que seria um governo que cata as migalhas do que sobrou do país. Precisamos avaliar o desempenho a partir dessa ótica. No campo da esquerda, vejo outro patamar, por exemplo, na visibilidade da deputada Erika Hilton (PSOL-SP). Sei tudo o que ela faz e o que defende. Mas a eleição do ano que vem é para não se arriscar. Basta olhar para os EUA e detectar a fragilidade democrática hoje.

Há também os que, como Sílvio Carvalho, dono de uma loja de lembranças turísticas no Pelourinho, se dizem insatisfeitos não apenas com o Lula 3, mas com o cenário político do país. Petroquímico aposentado, ele participou da ascensão do PT no estado a partir dos anos 1990 e hoje lamenta “o deserto de ideias novas”.

— Tive esperança com o PT, votei em Lula, trabalhador como eu, mas há três anos já foi muito difícil acompanhar a briga raivosa e baixa entre os dois lados. Anulei meu voto no segundo turno. Hoje estou em busca de um candidato de expressão nacional que não venha nem do lulismo nem do bolsonarismo, mas não consigo encontrar — lamenta.

A cristalização da polarização ideológica, reduz, sublinha o cientista político Cláudio Couto, da FGV, a possibilidade de migração imediata de um eleitor de Lula em 2022 desanimado com o atual governo para o campo oposto. Desde 2018, constata, “vivemos o curioso caso do país que, sob demanda por uma terceira via, como atestam as pesquisas, tem, no entanto, oferta incapaz de satisfazer a procura”.

Ao GLOBO, os insatisfeitos com Lula 3 já viam inserido no bolsonarismo os governadores de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), do Paraná, Ratinho Jr. (PSD), e de Goiás, Ronaldo Caiado (União), distantes de um mais palatável centro.

Apaixonados pelo presidente segue uma parcela de lulistas soteropolitanos que afirmaram não enxergar razão alguma para o descontentamento com o terceiro governo de Lula. Entre eles, o ambulante Matusalém Abbade, de 58 anos, que vende balangandãs na Barra:

— O que vale mais na minha cabeça segue sendo algo concreto, o número de pessoas que via passar fome e, com Lula, não mais. É o que seguirá guiando meu voto.

Voto ‘nem-nem’

Gerente de uma loja de roupas localizada em uma área dominada pelo dinâmico comércio popular do Centro Histórico de Salvador, Maria Aparecida dos Santos, de 56 anos, é militante política arraigada, mas do inexistente partido do voto nulo. Foi a mais incisiva dos muitos soteropolitanos que, ao GLOBO, se disseram adeptos do “nem-nem” — nem bolsonarista, nem lulista. Alguns adotam a prática desde 2018, mas a maior parte é recém-convertida.

— Cresci no interior da Bahia e, lá atrás, vi algum avanço nos primeiros governos de Lula. Depois, só retrocesso. O Bolsonaro não fez nada e mente muito. Já o atual governo não me fez voltar a acreditar na política, longe disso — diz a moradora do Ribeira, bairro da Cidade Baixa da capital baiana. — Ao contrário dos lulistas insatisfeitos, dos bolsonaristas à espera de um candidato e dos indecisos, estou desde já comprometida com meu voto. Em novembro do ano que vem cumprirei meu dever cívico e irei às urnas, para anular meu voto. Se não me oferecem opção, é o que me resta.

“Profundamente insatisfeito” com o governo Lula, o dono de banca de jornais Jantonio Grassi Junior, de 56 anos, votou em Ciro Gomes (PDT) em 2022 e anulou o voto no segundo turno:

— Se for Lula e um Bolsonaro ano que vem, tendo a fazer o mesmo. Não vou votar para o outro perder, preciso acreditar no candidato.

Sem vontade de participar

Além do voto nulo, há os que anunciam desde já a intenção de pagar a multa de R$ 3,51 por turno da eleição para não ter de sair de casa e votar “no petismo ou no bolsonarismo”, como afirmou o porteiro Luiz Claudio Jesuíno, de 36 anos, descrente “do cardápio político apresentado para as eleições presidenciais”. A ênfase no Executivo federal é porque ele vê, especialmente nos pleitos locais, opções além da polarização.

— Não era preciso ser bolsonarista para votar no Bruno Reis (União) para prefeito aqui de Salvador em 2020 e 2024, ou no ACM Neto (União) antes dele. Mas na disputa para presidente vira uma espécie de Ba-Vi (referência aos dois principais times da capital, Bahia e Vitória), uma guerra de torcida de clubes em que um lado prefere apontar os absurdos do outro do que dizer se vai fazer algo novo para beneficiar pessoas como eu — diz o morador da periferia da capital, que sonha em se formar em Administração e abrir seu próprio negócio.

Com a ponderação de que a amostra do GLOBO é aleatória e não científica, Cláudio Couto, da FGV, lembra que os depoimentos de soteropolitanos decididos a se abster do processo eleitoral presidencial e o aumento gradual, ainda que pequeno, da abstenção em pleitos recentes podem indicar uma mudança no comportamento do eleitor capaz de influenciar o resultado final em disputas especialmente acirradas, como a de Lula contra Bolsonaro em 2022.

Naquele pleito, 20,49% dos eleitores baianos não compareceram às urnas no segundo turno, patamar semelhante ao registrado a nível nacional.

Em todo o país, o petista teve 50,9% dos votos válidos, contra 49,1% do candidato à reeleição. As pesquisas mostram hoje que há possibilidade de divisão similar no ano que vem.

— O sentimento de decepção com os dois governos, o de Bolsonaro e o de Lula 3, faz da abstenção e do voto nulo reações não só de raiva, mas pensadas, com lógica. Há, sim, a possibilidade desse fenômeno para 2026, está posto. O que não sabemos ainda é o peso disso; precisamos mensurar de forma abrangente para nos preparar para a possibilidade do aumento significativo— analisa Couto.

O pesquisador também afirma que a tendência pode estar relacionada diretamente ao momento de mau humor dos eleitores, com a insatisfação em alta com um ou os dois campos polarizados. De qualquer modo, pontua, revela o desejo de parte do eleitorado de se encarar logo o primeiro turno como se ele já fosse a etapa final do pleito, sem considerar crível qualquer opção além do lulismo e do bolsonarismo. (Eduardo Graça)

Credito O Globo

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