A matéria do jornal Estadão aborda uma recente decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, também discute o padrão de censura judicial praticado por Moraes, comparando este caso a um episódio anterior em 2019, onde ele censurou uma reportagem da revista Crusoé. A discussão se estende aos inquéritos abertos pela Corte
Leia na íntegra:
Espanta a facilidade com que o STF suspende a liberdade de expressão, chegando às raias do absurdo: até os entreveros conjugais de um deputado tornaram-se risco às instituições
Na terça-feira, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, atendendo a um pedido dos advogados do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, ordenou a remoção de reportagens da Folha de S.Paulo, Mídia Ninja, Terra e Brasil de Fato em que sua ex-mulher, Jullyene Lins, o acusava de ameaças e agressão. No dia seguinte, Moraes recuou. Menos mal. Mas o ânimo censório da Corte e a naturalidade com que ela está normalizando o recurso à censura são alarmantes.
O caso ecoa a censura imposta por Moraes em 2019 a uma reportagem da revista Crusoé que revelava o codinome do ministro Dias Toffoli nos arquivos da Odebrecht. A ordem foi expedida no âmbito de inquéritos abertos pela Corte para apurar fake news e a atuação de milícias digitais. Na ocasião, Moraes também recuou, mas esses inquéritos intermináveis, elásticos e secretos já correm há cinco anos e a sociedade ainda não sabe quem supostamente ameaça as instituições, como são articuladas essas ameaças nem os seus propósitos. Mas eles têm servido de pretexto para toda sorte de intimidação e arbitrariedade.
Foi no âmbito desses inquéritos que Moraes determinou a censura de redes sociais que criticaram o projeto de lei das fake news, bloqueou perfis de influenciadores ou indiciou o dono do X, Elon Musk, por se queixar de suas decisões. As fundamentações, quando vêm à público, são sempre genéricas e opacas.
No caso das reportagens com Jullyene Lins, não foi diferente. Lins acusou o ex-marido de agressão em 2006 e depois, no processo, recuou das acusações. Lira foi absolvido em 2015. Em entrevista à Folha em 2021, ela alega ter sido coagida a recuar por meio de novas ameaças e agressões. Os textos censurados reportavam esses depoimentos, os fatos relevantes e as declarações do acusado.
Se há calúnia por parte de Jullyene Lins, que seja apurada e ela, julgada e punida. Mas o pedido da defesa alegou que as reportagens fariam parte de um “movimento orgânico, encadeado, de divulgação de notícia mentirosa”, com o “claríssimo propósito de desestabilizar não apenas a figura política” de Lira, como “atingir o exercício da elevada função da Presidência da Câmara dos Deputados”.
Foi a senha para ativar os apetites salvacionistas de Moraes: “Torna-se necessária, adequada e urgente a interrupção da propagação dos discursos com conteúdo de ódio, subversão da ordem e incentivo à quebra da normalidade institucional e democrática mediante bloqueio de contas em redes sociais”, disse no despacho. Por alguma curiosa hermenêutica, os entreveros conjugais de Lira tornaram-se um risco ao Estado Democrático de Direito. Só faltou acusar Jullyene Lins e as mídias de “extremistas” ou “golpistas”.
Na raiz de mais essa arbitrariedade está a confusão espúria entre as autoridades e as instituições que representam. Pessoas que supostamente ofendem juízes ou políticos são agora investigadas por “ataques às instituições” ou até por crimes que nem sequer existem como “desinformação” ou “discursos de ódio”.
Para piorar, a censura não só era descabida, como o STF não tinha competência para determiná-la. Deputados têm foro privilegiado se forem autores de crimes, não vítimas. Não bastasse isso, a demanda apresentada nem sequer era criminal, e sim cível. Mas com essas táticas Lira já logrou a censura de 15 conteúdos jornalísticos sobre este tema.
Neste último caso, Moraes recuou, mas as marcas da arbitrariedade ficaram. Mulheres devem pensar mais de uma vez antes de denunciar agressões de autoridades e poderosos, assim como a imprensa antes de reportá-las.
Mesmo a censura de conteúdos caluniosos é excepcionalíssima e exige certeza além de qualquer dúvida razoável. Ao receber um pedido desse gênero, o ímpeto inicial deveria ser preservar a liberdade de expressão, mas os ânimos no STF vão na direção oposta. Como diz o bordão, para quem tem um martelo, tudo é prego. Para quem se auto atribui uma jurisdição universal de defesa da democracia e da verdade, qualquer coisa pode virar “subversão da ordem” ou “quebra da normalidade institucional”, até briga de marido e mulher.