O editorial do Estadão analisa o discurso do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, na abertura do ano judiciário de 2025. Enquanto Barroso defendeu uma Justiça técnica, imparcial e imune às paixões políticas, o texto aponta uma realidade diferente: a crescente politização do STF e seu distanciamento desses ideais. O jornal destaca a contradição entre o discurso que prega a imparcialidade e as ações da Corte, que tem expandido suas competências além do papel constitucional e se envolvido em questões tradicionalmente reservadas ao Legislativo e ao Executivo.
Leia na íntegra:
Barroso está certo: a Justiça deveria ser técnica, imparcial e isenta de paixões políticas. Mas a dura realidade é que o próprio STF tem se afastado cada vez mais desse ideal
Ladeado pelos chefes do Executivo e do Legislativo, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, inaugurou o ano judiciário apresentando dados protocolares da Justiça e tecendo considerações genéricas sobre sua missão, como, aliás, convém a uma cerimônia desse tipo. Mas, como dizia a célebre ponderação do filósofo José Ortega y Gasset, “eu sou eu e minha circunstância”, e a circunstância da Corte é bem mais tumultuosa do que sugere o discurso de seu presidente.
“Todas as democracias reservam uma parcela de poder para ser exercida por agentes públicos que não são eleitos pelo voto popular, para que permaneçam imunes às paixões políticas de cada momento”, disse Barroso. “O título de legitimidade desses agentes é a formação técnica e a imparcialidade na interpretação da Constituição e das leis.” A fala, em tese, é irretocável. O problema é a sua discrepância com as práticas da Corte.
Pesquisas registram que a credibilidade do STF está em franco derretimento. No núcleo da desconfiança está justamente a percepção de que sua atuação é movida por paixões políticas, não só para interpretar a Constituição e as leis, mas reformulá-las.
“Somos contra todo tipo de abusos”, disse Barroso. Mas como conciliar essa intransigência com o fato de que mais de 90% dos magistrados e procuradores recebem acima do teto estabelecido pela Constituição que deveriam guardar?
“Celebramos a vitória das instituições e a volta do País à normalidade plena”, disse Barroso. Mas será normal haver inquéritos secretos que já duram milhares de dias, ao abrigo dos quais já se praticaram desde suspensões de perfis em redes sociais a censuras a veículos de comunicação? Quando Dias Toffoli dizima monocraticamente provas, confissões e punições no âmbito da Operação Lava Jato com fundamento na narrativa conspiratória petista, é de “técnica” e “imparcialidade” que se está falando? O próprio Barroso, supostamente a salvo das paixões políticas, vangloriou-se, num evento estudantil, de ter ajudado a derrotar o bolsonarismo.
“Decidimos as questões mais complexas e divisivas da sociedade brasileira”, disse Barroso. Eis o maior problema: a esmagadora maioria dessas questões deveria ser decidida pelo Parlamento. A parte que toca ao STF é crucial, mas limitada: exercer o controle de constitucionalidade.
A Corte, entretanto, vem ampliando a compreensão a respeito de suas próprias competências, ora atuando como uma espécie de Poder moderador entre os outros Poderes, ora agindo no lugar deles. Só no ano passado, o STF emitiu ordens executivas que abrangem desde as políticas de câmeras em uniformes policiais, passando por medidas de combate a queimadas até os preços de sepulturas, e disfarça cada vez menos sua ambição de legislar sobre questões como o aborto, liberação das drogas e regulação das redes sociais.
Alternando entre o triunfalismo e o vitimismo, os ministros frequentemente atribuem o descrédito à desinformação dos “inimigos da democracia”. Mas as pesquisas mostram que a desconfiança grassa à esquerda e à direita, e vai muito além da militância bolsonarista. As críticas mais contundentes não atingem o papel da Corte na defesa da democracia, mas justamente os abusos cometidos em nome dessa defesa.
Barroso está correto. O ideal da Justiça é de um quadro de servidores qualificados que arbitram conflitos sobre os quais não têm parte, aplicando leis que não criaram. Mas o sentimento predominante é de uma Corte instável, conivente com abusos e politizada.
Se os ministros não querem se fiar neste jornal, ouçam seus próprios pares. “Cabe sempre observar o limite da Constituição”, disse recentemente o vice-presidente da Corte, Edson Fachin. “Ao Direito o que é do Direito, e à política o que é da política”, declarou Fachin, que acrescentou, sabiamente, que, “numa democracia, não cabe ao árbitro construir o resultado”, ou seja, “o juiz não pode deixar de responsabilizar quem violou as regras do jogo, mas não lhe cabe dizer quem vai ganhar”.
Essas advertências foram feitas no aniversário do infame ataque do 8 de Janeiro às sedes dos Três Poderes, e deixam uma questão incômoda: seriam necessárias se o País gozasse mesmo de “normalidade plena”?