Foto – Egberto Nogueira
Leia Editorial na íntegra:
Sob quaisquer pontos de vista, a alta concentração de inquéritos policiais no gabinete do ministro Alexandre de Moraes não pode ser considerada normal em um Estado Democrático de Direito
Nos últimos anos, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes se tornou uma espécie de “delegado” na Corte – e, ao que parece, tomou gosto pela função, sob o beneplácito de seus pares.
O que já era perceptível à luz da atitude e de certas decisões monocráticas de Moraes pôde ser atestado por números. De acordo com um levantamento feito pelo Estadão com base em dados do portal Corte Aberta, no fim do ano passado, nada menos que 21 dos 37 inquéritos criminais em andamento no STF estão concentrados no gabinete do ministro Alexandre de Moraes. Para dar a dimensão dessa anomalia, o segundo ministro com mais investigações criminais sob sua relatoria, Luiz Fux, conduz apenas 3 inquéritos.
Sob quaisquer pontos de vista, isso não pode ser considerado normal, a começar pelo elevado número de investigações criminais sob a responsabilidade de uma Corte que, em tese, deveria se ocupar precipuamente da guarda da Constituição. E note-se que entre esses 37 inquéritos em curso não estão contabilizados os que tramitam na forma de “petições”, como a Petição 12.100, que investiga a formação dos acampamentos golpistas em frente dos quartéis do Exército, nem os que correm sob sigilo, como é o caso, por exemplo, do interminável e abrangente inquérito das fake news (Inquérito 4.781). Vale dizer, o número de investigações conduzidas pelo “delegado” Moraes é ainda maior do que o apurado por este jornal.
É certo que a Constituição confere ao STF o poder de processar e julgar ações penais que envolvam réus com foro especial por prerrogativa de função, o chamado “foro privilegiado”. Porém, o entendimento do colegiado sobre o alcance desse dispositivo constitucional tem a firmeza de um prego na areia. A depender das conveniências políticas de ocasião, para dizer o mínimo, os ministros mudam com impressionante rapidez e sem-cerimônia ímpar a própria jurisprudência da Corte para, na prática, escolher quem vão julgar a partir de critérios bem menos transparentes do que os fixados pela Lei Maior, o que ora aumenta, ora diminui os casos criminais em tramitação no STF. Não é assim que funciona o sistema de Justiça em um Estado Democrático de Direito.
Ademais, aqui ainda nem se está tratando de ações penais, mas de inquéritos policiais. Por que tantos sob a relatoria de Alexandre de Moraes? O que, em tese, o tornaria mais apto do que seus pares para presidir essas investigações? A rigor, nada, a não ser, talvez, sua propensão para atuar mais como um chefe de polícia do que como ministro de Corte Suprema, no melhor cenário, ou a tibieza de seus pares para frear esse acúmulo de poder, no pior. A Lava Jato já mostrou o que acontece quando se tenta estabelecer “juízos universais” sobre o que quer que seja. No caso de Moraes, a suposta defesa da democracia.
Para agravar um quadro anômalo por si só, não se pode desconsiderar que a alta concentração de inquéritos no gabinete do sr. Moraes se deve, entre outras razões, a uma compreensão elástica do instituto da prevenção. Diz-se “prevento” o juiz que primeiro decidiu em determinado processo, de modo que todos os outros casos ligados de alguma forma ao caso original devem ser submetidos à apreciação desse mesmo magistrado. A prevenção é, pois, uma salvaguarda do sistema de Justiça contra decisões discrepantes sobre questões que estejam relacionadas. Mas será mesmo que todos os 21 inquéritos relatados por Moraes chegaram até ele por estarem direta ou indiretamente ligados? Não parece ser o caso, afinal são múltiplas as investigações policiais em andamento, quando a prevenção, a rigor, pressupõe que sejam unificadas, como ressaltou a este jornal o professor Gustavo Badaró, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Tudo já seria espantoso se essa miríade de inquéritos relatados por Moraes tivesse objetos bem definidos e prazos razoáveis. Em muitos casos, não há nem uma coisa nem outra. E quanto mais essa aberração institucional perdurar, mais profunda será a fissura entre o STF e sua legitimidade perante parcela cada vez mais expressiva da sociedade brasileira.