Leia na íntegra
Por David Agape and Eli Vieira
A deturpação do protesto de 8 de janeiro de 2023 como um “golpe” por duas cortes superiores é parte dos planos de continuidade de poder do governo Lula
A tarifa de 50% imposta pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, sobre o Brasil, que deve entrar em vigor no dia 6 de agosto, é uma “chantagem inaceitável”, disse o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva. O governo Trump citou o processo judicial contra o ex-presidente Jair Bolsonaro como um motivo significativo para a aplicação de tarifas. Em resposta, Lula disse no X que o Brasil é “um país soberano, com instituições independentes, e não aceitará qualquer tutela”. O ministro Alexandre de Moraes do Supremo Tribunal Federal (STF), que é o relator do processo contra Bolsonaro, foi posto sob sanções pelo governo dos Estados Unidos na semana passada, uma medida que ele alega ser parte de ações “covardes e traiçoeiras”.
Bolsonaro atualmente enfrenta acusações de uma suposta tentativa de golpe de Estado e de reverter os resultados das eleições de 2022 em 8 de janeiro de 2023. No mês passado, Moraes ordenou que Bolsonaro usasse uma tornozeleira eletrônica e proibiu-o de usar as redes sociais e se comunicar com outras pessoas sob investigação.
Essas medidas são necessárias, afirmam as autoridades brasileiras, porque Bolsonaro poderia tentar fugir do país ou interferir no processo judicial. O processo contra Bolsonaro e os manifestantes do 8 de Janeiro, insiste Lula, é uma questão jurídica que não tem motivação política.
Mas agora, novos documentos revelam que o STF criou uma força-tarefa secreta e ilegal que usou as postagens de redes sociais dos manifestantes não violentos do 8 de Janeiro como justificativa para investigações e prisões. Esses arquivos do 8 de Janeiro fornecem evidências de que o ministro Alexandre de Moraes processou excessivamente os manifestantes do 8 de Janeiro para inflar as alegações de atividade criminosa e legitimar a afirmação de Lula de que o tumulto foi uma tentativa coordenada de golpe.
Tudo isso é significativo porque a acusação de golpe é a justificativa de Moraes para impedir Bolsonaro de falar com a imprensa e para exigir que ele permaneça em casa durante a maior parte do tempo. Em junho de 2023, Moraes também foi um dos cinco ministros que votaram no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que ele presidia na época, para tornar Bolsonaro inelegível por 8 anos.
O STF e Lula afirmam há muito tempo que a acusação contra Bolsonaro e seus apoiadores se baseia em provas legais sólidas, e não em vingança política, mas os Arquivos do 8 de Janeiro expõem essas acusações como fundamentalmente políticas.
Esses documentos revelam que, em vez de um processo legal independente, a investigação sobre o dia 8 de janeiro foi parcial e motivada por interesses políticos. Ao contrário das alegações de Lula de que um Judiciário independente buscava defender o processo democrático, a triagem dos manifestantes para detenção e prisão preventiva foi feita com base em opiniões políticas e, muitas vezes, simplesmente por criticarem Lula.
Por exemplo, a força-tarefa ilegal de Moraes denunciou um caminhoneiro por uma série de postagens no Facebook que criticavam Lula e questionavam as eleições de 2022. Acusado de tentativa de “abolição violenta do Estado democrático de direito”, o homem passou 11 meses e 7 dias na prisão sem nunca ter cometido um ato violento.

Outro homem foi preso por uma única postagem no Instagram. A postagem dizia: “Fazer cumprir a Constituição não é golpe”.

Em outro caso, um vendedor ambulante de 54 anos do sul do Brasil nem estava presente nos distúrbios de 8 de janeiro e chegou mais tarde naquela noite ao acampamento de manifestantes em frente ao QG do Exército em Brasília para vender bandeiras e camisetas. A polícia o deteve, e a força-tarefa emitiu um relatório secreto que foi usado como base para justificar que ele permanecesse preso por tuítes de 2018 criticando Lula e o Partido dos Trabalhadores. Nenhum desses tuítes mencionava o 8 de Janeiro ou mesmo as eleições de 2022. Ele passou quatro meses na prisão e agora usa uma tornozeleira eletrônica.
Os Arquivos do 8 de Janeiro vêm do mesmo acervo de mensagens de texto e outros documentos que os jornalistas Glenn Greenwald e Fábio Serapião usaram como base para suas reportagens publicadas pela Folha de São Paulo em agosto passado, conhecidas conjuntamente como o escândalo da “Vaza Toga”. As reportagens revelaram que Moraes havia ampliado seus poderes judiciais para perseguir oponentes políticos, tornando-se investigador, promotor e juiz. O acervo de mensagens de texto e gravações de áudio da Vaza Toga mostrou que Moraes acessou registros policiais confidenciais para criar relatórios de inteligência extraoficiais e justificar a perseguição de apoiadores de Bolsonaro sem ordens judiciais formais.
Em resposta à Vaza Toga, Moraes abriu uma investigação secreta sobre o vazamento, recusou-se a devolver um telefone apreendido de seu assessor e não enfrentou nenhuma responsabilização, enquanto o presidente do STF descartou as provas como uma “tempestade fictícia”.
Mas os Arquivos do 8 de Janeiro mostram informações até aqui inéditas: como parte do esforço ilegal e abrangente de Moraes, seus investigadores usaram expressões políticas nas redes sociais para determinar quais manifestantes do 8 de Janeiro seriam investigados, processados e condenados à prisão. Essa evidência do abuso de poder do tribunal a serviço do governo Lula tem implicações importantes para as relações entre os Estados Unidos e o Brasil e para as negociações comerciais em andamento.
Nas semanas seguintes às detenções do 8 de Janeiro, centenas de detidos permaneceram na prisão — mesmo quando a Procuradoria-Geral da República recomendou formalmente sua libertação. Advogados, familiares e defensores públicos não tiveram uma explicação clara para o motivo pelo qual os pedidos estavam sendo ignorados.
O advogado Ezequiel Silveira, da Associação de Famílias e Vítimas do 8 de Janeiro (ASFAV), que representa dezenas de réus acusados em conexão com os eventos da data, observou que os prazos legais foram ignorados, com atrasos de até 22 dias, violando o Código de Processo Penal, que exige uma audiência dentro de 24 horas após a prisão. O que os defensores públicos e advogados suspeitavam, mas ainda não podiam provar, agora pode ser confirmado pelos Arquivos do 8 de Janeiro. A verdadeira razão por trás dos atrasos era que Moraes estava esperando sua força-tarefa concluir varreduras digitais informais das redes sociais dos réus.
O uso da expressão online como fundamento secreto para a acusação foi explícito por parte do tribunal. Em 13 de fevereiro de 2023, a chefe de gabinete de Moraes disse sem rodeios no grupo interno do WhatsApp, “A PGR (Procuradoria-Geral da República) pediu LP (liberdade provisória) para eles, mas o ministro não quer soltar sem antes a gente ver nas redes se tem alguma coisa.”

Em 1º de março de 2023, o juiz Airton Vieira, assessor de Moraes, enviou uma mensagem de despedida ao grupo do WhatsApp. Ele havia acabado de encerrar sua função de supervisionar as audiências de custódia dos detidos do 8 de Janeiro.
O juiz escreveu: “Despeço-me aqui, singelamente, pois nos demais grupos já estou me despedindo… Que nas audiências de custódia possamos dar a cada um o que lhe é de direito: a prisão! 😜😜😜😜😜”. O juiz tinha sido encarregado de garantir a imparcialidade, mas suas mensagens privadas revelaram seu julgamento antecipado e um cinismo por trás de uma operação que suspendeu o devido processo legal enquanto os responsáveis fingiam defendê-lo.

Sua referência a “outros grupos” sugeria algo mais: a existência de várias conversas paralelas além daquela que vazou. De acordo com nossas fontes ligadas ao TSE, havia de fato vários outros grupos do WhatsApp usados para discutir assuntos oficiais — todos parte de uma rede mais ampla e compartimentada que operava fora dos limites legais estabelecidos.
Usando postagens nas redes sociais para decidir se iria processar tanto vândalos quanto manifestantes pacíficos, o tribunal acusou muitas pessoas de crimes graves, incluindo “tentativa de golpe de Estado”. Alguns desses casos, secretamente baseados em manifestações políticas, resultaram em longas penas de prisão. Além disso, o STF usou ilegalmente o banco de dados biométrico do Tribunal Superior Eleitoral, o GestBio, para identificar manifestantes.
Solicitamos comentários ao STF, ao TSE, à Procuradoria-Geral da República, ao Exército Brasileiro, a Moraes e a outras pessoas do grupo do WhatsApp. Ninguém respondeu até o momento da publicação.
Juristas contatados pela Public confirmaram que a criação de relatórios secretos de inteligência pelo STF e o uso de postagens nas redes sociais para determinar quais indivíduos deveriam ter a detenção convertida em prisão preventiva foram uma clara violação de várias proteções garantidas pela Constituição brasileira.
“O que deveria ser um órgão técnico e neutro, focado em preservar a integridade do processo eleitoral”, disse Richard Campanari, advogado constitucionalista, “foi transformado em um mecanismo informal de repressão política. O poder de polícia do Tribunal Superior Eleitoral é limitado à forma e ao meio de divulgação da propaganda eleitoral — nunca ao conteúdo da expressão política e, certamente, não fora do período eleitoral”.
O ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello, disse à Public: “A Constituição é clara: somente a polícia judiciária e o Ministério Público têm autoridade para investigar crimes. Quando o TSE assume esse papel, ele ultrapassa sua jurisdição e distorce o modelo de justiça criminal”.
“Que tipo de audiência de prisão preventiva é essa, se o juiz presidente nem sequer tem o poder de revisar a legalidade da prisão?”, questionou Enio Viterbo, especialista em direito constitucional.
A força-tarefa secreta do STF operava por meio de um grupo no WhatsApp, e seus participantes criavam “certidões” informais baseadas em parte nas postagens de redes sociais dos acusados. Notavelmente, eles não compartilhavam esses relatórios com promotores ou advogados de defesa.
Por meio de URLs de assinatura digital, conseguimos confirmar a autenticidade de todas as 69 certidões que obtivemos dos arquivos. Os links levam à íntegra de cada certidão hospedada no site do TSE em URLs abertas, mas não indexadas para pesquisa. Arquivamos todas essas certidões, mas elas não poderão ser divulgadas por conterem dados pessoais confidenciais dos investigados.
Uma fonte próxima à investigação nos disse que pessoas que postavam conteúdo pró-Bolsonaro, vestiam verde e amarelo (cores da bandeira brasileira), seguiam páginas de direita ou criticavam as eleições foram marcadas como “positivas” (isto é, “suspeitas”).
De acordo com o STF, das 1.406 pessoas presas após 8 de janeiro, 942 tiveram sua detenção convertida em prisão preventiva. Apenas 464 receberam liberdade provisória.
Nossa equipe analisou as planilhas usadas pela força-tarefa para classificar os detidos. Com base nas certidões a que tivemos acesso, entre 1.879 nomes únicos, 319 indivíduos receberam algum tipo de certidão digital. Eduardo Tagliaferro, chefe da Assessoria Especial de Combate à Desinformação (AEED) do Tribunal Superior Eleitoral, disse no chat do WhatsApp vazado que foram emitidas 1.398 certidões no total.
Dos registros que analisamos, 42 pessoas foram classificadas com certidões “positivas” e 277 como “negativas”. Em seguida, cruzamos os dados com duas listas divulgadas pelo STF: uma para aqueles que foram libertados e outra para aqueles que foram enviados à prisão após as audiências. Das 319 pessoas para quem foram emitidas certidões da nossa amostra, 251 estavam em uma das duas listas (36 positivas, 215 negativas). O principal padrão observado em nossa amostra é que, embora uma certidão negativa não fosse garantia de libertação, nenhuma pessoa que recebeu uma certidão positiva foi liberada. Isso significa que a opinião política foi efetivamente tratada como crime. As certidões positivas não apresentavam evidências de atividade criminosa ou irregularidades, mas se concentravam no discurso político dos manifestantes e na lealdade a Bolsonaro.
Mesmo entre os “negativos”, 68% também permaneceram atrás das grades. Entre os detidos estava uma engenheira de 55 anos e pastora ordenada de São Paulo que foi a Brasília em 8 de janeiro para rezar com um grupo de pastores. O tribunal a condenou a 17 anos de prisão. Ela passou sete meses em prisão preventiva, perdeu sua casa e desenvolveu sinais de câncer de cólon enquanto estava sob custódia. Outra era mãe de dois filhos pequenos, condenada pelo STF a 17 anos de prisão.
Os Twitter Files Brasil descobriram que, nos anos que antecederam as eleições de 2022, o Tribunal Superior Eleitoral pressionou plataformas a entregar dados de usuários, incluindo endereços de IP. As ordens judiciais visavam cidadãos que postaram hashtags críticas às urnas eletrônicas brasileiras.
O que os Twitter Files expuseram como excepcional — a perseguição de pessoas por suas opiniões políticas — agora é revelado como um padrão pelos Arquivos do 8 de Janeiro. A última leva de certidões foi concluída em 13 de março de 2023, depois o grupo do WhatsApp ficou inativo.

Os membros da força-tarefa envolveram como parceiros ativistas e agências de checagem de fatos. Esses parceiros se infiltraram em chats privados e enviaram e-mails para a conta pessoal de Moraes em uma atividade semelhante à da jornalista e acadêmica Letícia Sallorenzo, que anteriormente compilou listas de alvos e as enviou diretamente ao tribunal. Em seu trabalho acadêmico, ela defendeu a censura online.

“O Brasil está testemunhando, com uma passividade alarmante, a expansão do poder judicial além dos limites constitucionais”, disse Campanari.
Como algo assim pode ocorrer em uma nação com proteções constitucionais ao devido processo legal e um Judiciário independente? Como Moraes está conseguindo se safar do que está fazendo?
A fabricação de um “golpe”
Em 8 de janeiro de 2023, o Brasil enfrentou sua própria versão do 6 de janeiro de 2021 nos Estados Unidos. Centenas de apoiadores de Bolsonaro invadiram prédios do governo em Brasília. Eles estavam revoltados com uma suposta fraude eleitoral e o retorno ao poder de um político, Lula, que havia sido condenado por corrupção por dois tribunais.
Embora tenham ocorrido vandalismo e confrontos com as forças de segurança, muitos dos manifestantes eram idosos e nenhum estava armado. No entanto, em poucas horas, o STF e grande parte da imprensa classificaram o evento como uma “tentativa de golpe” e rotularam os manifestantes como “terroristas” e “fascistas”.
O que se seguiu foi uma repressão sem precedentes: prisões em massa, ordens de censura e a concentração de poderes extraordinários nas mãos de Moraes, o mesmo ministro que, vinte meses depois, ordenou o fechamento da rede social X no Brasil por 40 dias e agora é mundialmente famoso por banir jornalistas e políticos da oposição das redes sociais.
Moraes ocupava dois cargos poderosos ao mesmo tempo: ministro do Supremo Tribunal Federal e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), órgão que supervisiona as eleições no Brasil. Como presidente do TSE, Moraes confirmou a vitória eleitoral de Lula e, desde então, tem agido em estreita sintonia com Lula, turvando as fronteiras entre o Judiciário e o Executivo. Para servir aos interesses políticos de Lula, Moraes usou sua dupla função no STF e no TSE para contornar limites legais, transformando funcionários do tribunal em uma unidade de inteligência.
Embora a operação tenha sido dirigida a partir de seu gabinete no STF, as principais tarefas ficaram a cargo da equipe de desinformação do TSE, que não tinha jurisdição sobre questões criminais e que havia sido criada originalmente pelo TSE para monitorar o conteúdo eleitoral online.
Registros oficiais mostram que a polícia prendeu 243 pessoas em 8 de janeiro dentro ou nas proximidades de prédios governamentais e as acusou de crimes extremamente graves, incluindo danos à propriedade pública, abolição violenta do Estado democrático de direito e participação em uma organização criminosa. Posteriormente, os juízes condenaram alguns deles a até 17 anos de prisão, apesar de nem mesmo terem cometido um ato de vandalismo.
O simples fato de andar pelo Congresso foi suficiente para que alguns manifestantes fossem acusados de tentar derrubar o governo. Três pessoas sem teto, além de crianças e idosos com graves problemas de saúde, estavam entre os detidos.
O STF também impôs uma multa coletiva de R$ 30 milhões que todos os 643 condenados até o momento terão que pagar, independentemente de suas ações individuais.
No dia 9 de janeiro, a polícia deteve outras 1.929 pessoas que protestavam pacificamente em acampamentos nas imediações do QG do Exército. Por ordem de autoridades, os oficiais do Exército mentiram para eles, alegando que seriam levados à rodoviária para voltar para casa. Em vez disso, eles os entregaram à polícia, que os levou diretamente para a prisão. O Exército brasileiro havia afirmado publicamente que considerava os protestos liberdade de expressão protegida pela Constituição.
Os processos judiciais do 8 de Janeiro revelaram um sistema judicial de duas faces. Em 2006, um grupo de ativistas de esquerda invadiu o Congresso, virou carros, destruiu portas e propriedades e feriu gravemente funcionários, incluindo um segurança que teve o crânio fraturado.
O então presidente Lula chamou os atos de “vandalismo” — um termo agora considerado leniente demais para os manifestantes do 8 de Janeiro —, mas atuou nos bastidores para garantir a soltura dos envolvidos. Assim, a maioria dos perpetradores foi libertada em poucas semanas. À época, o próprio Alexandre de Moraes descreveu os protestos como “atos criminosos”, mas não como uma ameaça institucional, e defendeu penas de até quatro anos — bem diferente das sentenças de até 17 anos aplicadas hoje aos réus do 8 de Janeiro.
Em 2014, ativistas de esquerda tentaram invadir o STF, feriram vários policiais e forçaram a suspensão de uma sessão. A presidente Dilma Rousseff, herdeira política de Lula, convidou os líderes para uma reunião em seu gabinete no dia seguinte. Nenhuma prisão em massa foi necessária.
Na última década, grupos de esquerda realizaram dezenas de invasões e atos de vandalismo contra prédios públicos, muitas vezes deixando um rastro de destruição, raramente enfrentando as duras sentenças agora proferidas contra os réus do 8 de Janeiro.
Especialistas jurídicos contatados pelo Public concordaram unanimemente que Moraes ultrapassou os limites constitucionais após o 8 de Janeiro, transformando efetivamente o TSE em um sistema judicial paralelo ilegal que decidia quem ficava na prisão não por meio de audiências, mas por meio de varreduras nas redes sociais compiladas às pressas.
Fontes descreveram como funcionava o processo. O STF recebia listas de nomes da Polícia Federal. Em seguida, os funcionários extraíam dados do banco de dados da Receita Federal (bCPF) e do Registro Nacional de Carteiras de Motorista (RENACH). Eles também acessavam sistemas internos como o GestBio, o banco de dados biométrico de eleitores do TSE, que contém imagens faciais, impressões digitais e dados pessoais de quase todos os brasileiros adultos – um banco de dados que nem mesmo a Polícia Federal tinha.
Após os eventos de 8 de janeiro, Moraes emitiu uma ordem formal autorizando o uso dos bancos de dados internos do TSE pelo STF. A equipe de desinformação então usou o GestBio para identificar manifestantes com base em imagens.
Acessar dados biométricos sem uma ordem judicial adequada ou autorização legal explícita é ilegal, de acordo com o advogado constitucional Richard Campanari, membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político. A lei exige que o sistema GestBio seja usado apenas para fins eleitorais, como evitar registros eleitorais duplicados.
O objetivo dessa busca era encontrar uma foto recente de cada detido. Depois de associar um nome a um rosto, a equipe vasculhava as redes sociais em busca de postagens que pudessem ser interpretadas como “antidemocráticas”. Os critérios variavam de caso a caso. O padrão era qualquer coisa que a equipe conseguisse encontrar. Isso poderia incluir compartilhamentos de postagens nas redes sociais sobre os protestos, críticas ao STF ou ao presidente Lula, participação em um grupo no Telegram e Whatsapp ou compartilhamento de conteúdo relacionado às eleições rotulado como “desinformação”. Cada certidão era baseada em pesquisas rápidas em plataformas como Facebook, Instagram, Twitter, TikTok, YouTube, Telegram e Gettr. Se algum conteúdo fosse encontrado, o detido recebia uma “certidão positiva”. As principais fontes usadas para justificar a rotulação eram frequentemente notícias e perfis anônimos no Twitter — muitas vezes sem verificação da autoria ou do contexto.
Erros eram comuns. Em um caso, uma mulher chamada Vildete foi erroneamente sinalizada como “positiva”. Minutos depois, a equipe percebeu que a havia confundido com outra pessoa e alterou sua classificação para “negativa”. A mulher era provavelmente Vildete da Silva Guardia, uma aposentada de 74 anos que se tornou uma das vítimas mais simbólicas do abuso judicial. Mesmo com a certidão corrigida, ela permaneceu na prisão — e só foi libertada 21 dias depois devido a uma hemorragia intestinal grave.
Em outro caso, Adenilson Demetrio de Cordova recebeu uma classificação “positiva” por causa de uma única postagem encontrada no X. Ela estava vinculada a uma petição intitulada “Manifesto à Nação Brasileira — Em Defesa da Liberdade”, publicada meses antes das eleições de 2022 por um perfil com nenhum seguidor e nenhuma visualização.

Um caso ainda mais absurdo envolveu outro Ademir — desta vez Ademir Domingos Pinto da Silva, um vendedor ambulante de 54 anos do sul do Brasil. Ele nem estava presente nos distúrbios de 8 de janeiro. Ele chegou mais tarde naquela noite ao acampamento do QG em Brasília, após o fim da invasão, apenas para vender bandeiras e camisetas. A polícia o impediu de sair e ele foi detido. Ele foi rotulado como “positivo” não por qualquer ato de violência, mas por tweets que ele postou em 2018 criticando Lula e o Partido dos Trabalhadores. Nenhum deles mencionava o dia 8 de janeiro — nem mesmo as eleições de 2022.

Mesmo assim, a certidão contra ele foi assinada pela unidade de desinformação e usada para justificar quatro meses de prisão e uma condenação criminal. Ele agora usa uma tornozeleira eletrônica e é obrigado a cumprir serviço comunitário. Seu advogado chamou o caso de “uma mancha vergonhosa no Supremo Tribunal Federal” e disse que Ademir foi condenado “sem que um único juiz lesse seu processo”.
Nossas fontes revelaram que a chefe do gabinete de Moraes no STF, Cristina Yukiko Kusahara, atuou como representante informal de Moraes, apesar de não ocupar nenhum cargo oficial no TSE. “Ela basicamente dizia aos juízes o que fazer”, disse uma pessoa envolvida no processo.
Kusahara impôs um controle rigoroso e um ritmo de urgência. Ela forneceu os modelos dos documentos e dirigiu o fluxo de comunicação entre os investigadores. Ela deixou claro que o objetivo era determinar quem deveria permanecer na prisão e quem poderia ser libertado.
As ordens de Kusahara eram implacáveis. Ela ditava o ritmo e pressionava pela quantidade em vez da precisão. Quando Tagliaferro levantou preocupações, apontando que sua equipe nunca havia sido treinada para realizar trabalho de inteligência, Kusahara escreveu, em uma mensagem de texto: “Eu preciso dessa análise, feita com cautela, mas não no ritmo de vocês aí do TSE… Desculpe a expressão… O pessoal aí está mal acostumado.”

Tagliaferro respondeu explicando que sua unidade havia sido originalmente criada para outro propósito sob Frederico Alvim, o anterior chefe da divisão de desinformação.
Kusahara, por sua vez, comentou que “Fred” deveria ter sido demitido há meses.
Tagliaferro respondeu: “Sim, e vai, só não dava para fazer no olho do furacão”.
Em uma mensagem de voz enviada ao juiz instrutor do STF Airton Vieira na época das eleições, Tagliaferro reclamou que a carga de trabalho era insustentável e que as ordens de Moraes eram “simplesmente desumanas”.
Kusahara não deixou dúvidas sobre o objetivo da operação. “Temos 1.200 pessoas custodiadas, e a maioria vai ser liberada”, escreveu ela. “Não podemos nos dar ao luxo de ficar filosofando.”

Por “filosofar”, Kushara se referia às crescentes preocupações entre os funcionários sobre nomes duplicados, falhas técnicas e a velocidade do processo.
As mensagens mostram que os funcionários receberam listas informais de detidos, incluindo nomes, fotos e números de identificação da Polícia Federal, sem qualquer cadeia de custódia formal.
Em um áudio, um policial federal pediu para manter a confidencialidade porque os dados eram “muito procurados”. O pedido revelou o conhecimento de que o material estava sendo compartilhado fora dos canais legais adequados.
Em uma mensagem, Kusahara reconheceu que a Procuradoria-Geral da República havia recomendado a libertação de um grupo de detidos, e que Moraes se recusou a soltá-los até que sua equipe terminasse de analisar suas redes sociais.

Kusahara é a assessora mais próxima de Moraes desde 2019 e, em 2023, o Exército Brasileiro a homenageou publicamente com um prêmio destinado a civis que prestam serviços notáveis às Forças Armadas. Os arquivos da Vaza Toga revelaram que Kusahara sugeriu a estratégia de disfarçar as ordens de Moraes como solicitações do Tribunal Superior Eleitoral.
Outros assessores contribuíram para a investigação, mas raramente apareceram nas conversas do grupo. Sua missão: traçar o perfil de 1.400 detidos em massa, usando qualquer vestígio digital disponível — e fazê-lo rapidamente. O principal responsável era Tagliaferro, que coordenava alguns assistentes que produziram as certidões com base em pesquisas nas redes sociais e dados extraídos de bancos de dados do tribunal.
Juristas e especialistas comentam as revelações
Um dos críticos mais veementes de Moraes é o ex-ministro Marco Aurélio Mello, que condenou repetidamente a concentração de poder no STF e a falta de transparência exposta pela Vaza Toga. Mello considera desproporcionais as sentenças proferidas contra os manifestantes do 8 de Janeiro. “Não consigo entender como eles podem ser condenados a 15, 16, 17 anos de prisão”, disse ele. “Essas são sentenças para assassinos ou assaltantes armados, não para manifestantes ou vândalos.”
De acordo com o advogado André Marsiglia, especialista em liberdade de expressão, é ilegal que o TSE produza relatórios que influenciem decisões judiciais, como a prisão ou a libertação dos réus do 8 de Janeiro. Ele argumenta que a tarefa de investigar e construir uma acusação pertence exclusivamente ao Ministério Público, que deve permanecer independente do tribunal que emite as decisões.
“O órgão responsável pelo julgamento não pode ser o mesmo que produz as provas”, disse ele. “Isso representa uma usurpação inconstitucional das funções do Ministério Público — uma distorção típica de regimes autoritários, onde a lei é usada como arma de vingança.”
Tal delegação de poder investigativo é inerentemente ilegítima. “Uma vez que um órgão investigativo está subordinado ao mesmo tribunal que posteriormente julgará o caso”, explicou ele, “todo o processo fica viciado desde o início — minando o princípio fundamental de que aqueles que processam devem ser separados daqueles que julgam”.
Silvio Kuroda, advogado de uma investigada pelo 8 de janeiro, especialista em Direito Público e ex-assessor de um ministro do Superior Tribunal de Justiça do Brasil, concordou. “Não se pode admitir que um órgão do Poder Judiciário Eleitoral, sob o pretexto de combater a desinformação, realize medidas investigativas destinadas a coletar provas sobre a autoria e a materialidade de crimes”.
O advogado Hugo Freitas, mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, observou que a Constituição brasileira só permite a prisão preventiva quando necessária para proteger a ordem pública. “Na prática, o Estado está concedendo ou negando liberdade com base nas opiniões ideológicas dos cidadãos”, disse ele. “Isso é incompatível com a Constituição, que defende a igualdade e proíbe todas as formas de censura política ou ideológica”, afirmou, citando o artigo 220, parágrafo 2.
“O sistema judiciário deve existir para investigar e punir crimes conforme definidos pela lei”, disse ele. “Mas este caso reforça a percepção de que o Supremo Tribunal Federal, o Ministério Público Federal e a Polícia Federal estão usando-o para fins políticos. Isso é inconstitucional. O Estado não pode assumir poderes além dos que a lei permite”. Freitas cita como exemplo os acordos de não acusação oferecidos a muitos réus do 8 de Janeiro, que exigiam que eles participassem de um “curso sobre democracia”.
“O Estado não tem autoridade para obrigar os cidadãos a participar de sessões de reeducação. A Constituição não lhe confere o poder de controlar as ideologias das pessoas. Os cidadãos são livres para pensar como quiserem — mesmo que se oponham à própria democracia. O que a lei permite é apenas a repressão de atos criminosos específicos”, afirmou.
Ives Gandra da Silva Martins, respeitado jurista de 90 anos, disse que se opõe à doutrina “neoconstitucionalista” de Moraes. Ele argumenta que a abordagem de Moraes “se encaixa melhor em sistemas parlamentares do que no sistema presidencialista brasileiro, e confunde a clara separação de poderes prevista na Constituição”. Ao transformar a força-tarefa no que Gandra chama de “uma espécie de guardiã do que pode ou não ser dito na democracia brasileira”, Moraes assumiu um nível de poder que a Constituição nunca pretendeu.
Sob a autoridade de Moraes, o Judiciário brasileiro se politizou para promover os objetivos do presidente Lula e seus aliados políticos. Os Arquivos do 8 de Janeiro mostram que o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral, longe de defender eleições livres e justas, minaram as liberdades civis básicas, a Constituição e o Estado de Direito. Ao usar o discurso político como base para prender manifestantes, os tribunais justificaram prisões e processos, criando a aparência de um “golpe”. A continuação do processo contra Bolsonaro por Moraes, em coordenação com o presidente Lula, por essa alegação fabricada, representa uma grande ameaça à democracia.