Entenda a perda de controle do governo brasileiro sobre documentos sigilosos e seus impactos à democracia.
O governo brasileiro perdeu o controle sobre documentos sigilosos, secretos e ultrassecretos, falhando em monitorar a classificação dos papéis oficiais e órgãos que descumprem a legislação. A conclusão da Transparência Brasil é que não é possível saber com precisão quantas informações foram classificadas como sigilosas e que a Comissão Mista de Reavaliação de Informações (CMRI), que deveria servir para filtrar as informações, é ignorada pelos órgãos responsáveis.
O relatório da entidade também constatou que os dados divulgados pelos órgãos ministeriais e na base de informações classificadas pela CMRI revelam graves lacunas na gestão dos sigilos no governo federal brasileiro. O levantamento apurou que órgãos ministeriais editaram ao menos 25.955 documentos como sigilosos, secretos e ultrassecretos desde a entrada em vigor da Lei de Acesso à Informação (LAI), há 12 anos, mas a CMRI tem sob custódia apenas 23.980, uma diferença de quase 2 mil informações classificadas. Estes números não incluem as Forças Armadas.
Segundo a Transparência Brasil, o Ministério das Relações Exteriores foi o que mais descumpriu a obrigação de enviar os Termos de Classificação de Informação (TCIs). “Em seu site, o órgão informa ter produzido 24 mil TCIs relativos aos graus secreto e ultrassecreto – 1,2 mil a mais do que consta na base da CMRI, mas o problema é potencialmente maior. Realizando o cruzamento item a item das listas de documentos classificados, a partir da numeração única que cada sigilo recebe, a Transparência Brasil conseguiu identificar, individualmente, 8.729 sigilos que não estão na base da CMRI. Constatou-se, ainda, que 5.369 informações classificadas só estão presentes na base da Comissão e não aparecem nos portais dos órgãos ministeriais”, alerta o relatório.
Segundo o coordenador de projetos e do levantamento da Transparência Brasil, Cristiano Pavini, além de apresentarem uma somatória de sigilos divergente, as bases dos órgãos e da CMRI também têm elevada quantidade de elementos distintos entre elas, considerando a numeração única de cada sigilo, entre os itens elencados. A expressiva divergência pode ser resultante da inexistência, de fato, do sigilo em uma das duas fontes (site do órgão ou CMRI), ou por erros de cadastro do poder público.
“Entre os sigilos que não constam na base da CMRI está uma suposta ameaça de atentado contra o presidente da República, classificado como secreto (portanto, com acesso restrito por 15 anos) pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin) em 2022 [último ano de gestão de Jair Bolsonaro]”, revela o documento.
A entidade também avalia que a CMRI usa sistema tecnológico defasado para recepção e monitoramento dos sigilos e não tem meios para verificar se está recebendo todos os TCIs sobre informações classificadas como secretas e ultrassecretas, nos termos que exige a legislação. “Por sua vez, a CMRI também descumpre sua atribuição de reanalisar a cada quatro anos, de ofício, todas as informações classificadas como secretas e ultrassecretas para decidir se o sigilo deve ser mantido, ampliado, reduzido ou extinto”, acrescenta.
O órgão tem sob custódia aproximadamente 26 mil TCIs nesses dois graus de sigilo (incluindo as Forças Armadas), mas de 2012 a 2022 só analisou 1.149 informações, segundo o relatório de atividades mais recente.
Para Pavini, a situação chama atenção por uma série de fatores e se replica em estados, municípios e outras esferas de poder. “Mesmo no governo federal, que é tido como referência, que tem o chamado padrão ouro [em transparência], a situação é complicada. Vimos que o governo brasileiro perdeu o controle, não sabe quantos sigilos existem. Banalizou tanto e não há padronização, cada um [órgão] publica de um jeito, tem um nível de informações diferentes do porquê aquilo está sigiloso”.
Para o especialista, isso é duplamente danoso: por um possível sigilo indevido e pela restrição à sociedade, que não sabe do que se trata nem pode pedir a desclassificação porque não tem meios para checar aquela informação.
Sigilo não é ilegal, mas não pode ser banalizado
Segundo o coordenador de projetos da Transparência Brasil, Cristiano Pavini, é imprescindível destacar que o sigilo não é algo “absurdo”, nem atípico. Existem hipóteses para classificação, sobretudo quando se trata de segurança nacional, conforme definições previstas na LAI.
“Não pode ocorrer a banalização e extrapolação. Há casos em que se observa a decretação do sigilo sobre um assunto apenas porque pode provocar desgastes para a gestão ou para o governante. Isso se torna um interesse pessoal de não querer se desgastar ou não prestar contas à sociedade. [O gestor] acredita estar no direito de sobrepor o direito coletivo de ter acesso à informação com o pretexto de evitar desgastes e, assim, alguns temas não são levados para o debate público”, critica.
Além disso, o CMRI editou, em 2017, uma portaria delegando aos ministros de Estado a atribuição de reanalisar as informações secretas, o que não é autorizado pelo decreto que regulamenta a LAI. “A justificativa para a portaria é que a Comissão não possui estrutura compatível com a tarefa de reanálise. O texto, porém, não estabelece procedimento para que os órgãos ministeriais prestem contas dessa função, tampouco para que a CMRI fiscalize seu cumprimento. Segundo o decreto que regulamenta a LAI no governo brasileiro, todo sigilo no grau secreto ou ultrassecreto que não for revisado de ofício a cada quatro anos perde, automaticamente, a sua validade”, explica.
Assim, o descumprimento pela CMRI da obrigação de revisar as informações classificadas e a incompletude de sua base de TCIs custodiados geram insegurança jurídica ao poder público e prejuízo à sociedade, pois dezenas de milhares de sigilos estão, potencialmente, sem respaldo legal, conforme a Transparência Brasil.
Para o cofundador e coordenador da Fiquem Sabendo, Bruno Morassutti, a perda de controle sobre os documentos sigilosos e secretos é nociva à sociedade e alerta para a falta de transparência na gestão pública, não exclusiva da União, mas que tem se repetido em escalas ainda maiores nos governos estaduais, municipais e em outras esferas.
“Com frequência, a entidade [Fiquem Sabendo] reverte negativas às informações sob argumentação de sigilo. Geralmente, conseguimos reverter essas negativas em recursos, porém ainda há uma preocupação muito grande. Há um problema de informação e de capacitação dos servidores. Nos estados e municípios, a situação é pior porque há menos infraestrutura, menos treinamento, geralmente a pessoa não tem uma dedicação exclusiva no que está fazendo, então prefere negar informação”, analisa.
Para o especialista, governos e diferentes poderes têm praticado um movimento para limitar o acesso às informações, em um processo de retrocesso na transparência da gestão pública. “A Marinha tem cerca de 30 mil documentos classificados. Uma vez solicitamos acesso aos documentos com prazo expirado e ela disse que só poderia fornecer analisando um a um antes. Isso está em desacordo com a LAI”, contesta.
Segundo Morassutti, a Marinha respondeu que poderia analisar 10 documentos por mês. “Isso levaria quase 50 anos para desclassificar tudo. Então, temos metodologias muito equivocadas de tratamento de informação, o que acaba gerando um descontrole”.
O especialista avalia que recentemente, após decisões do Tribunal de Contas da União (TCU) e até mesmo em razão dos problemas que se observaram com o governo brasileiro, a Controladoria-Geral da União (CGU) e a Casa Civil da Presidência da República começaram a fazer o que chamou de lição de casa. “Estão tentando organizar um pouco a situação. Houve um decreto no ano passado da Presidência da República que estabeleceu alguns critérios adicionais para melhorar. Está um pouco melhor, mas longe do ideal”, comenta.
A Gazeta do Povo procurou a Marinha, mas até a publicação desta reportagem não havia resposta sobre o tema. O espaço segue aberto.
Quem pode classificar documentos sigilos no governo federal?
A reportagem também questionou à Controladoria-Geral da União quem está habilitado a realizar a classificação em cada grau de sigilo no governo federal. A CGU informou que a competência para classificação das informações no âmbito da administração pública federal varia de acordo com o grau: ultrassecreto, secreto e reservado.
“São autoridades competentes para a classificação de informações no grau ultrassecreto (art. 27, I, da LAI): presidente da República, vice-presidente da República, ministros de Estado e autoridades com as mesmas prerrogativas, comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica e chefes de Missões Diplomáticas e consulares permanentes no exterior”, esclarece.
Ainda de acordo com a CGU, a informação pode ser classificada no grau secreto pelos titulares de autarquias, fundações ou empresas públicas e sociedades de economia mista, assim como por todos os autorizados para classificação da informação como ultrassecreta.
A classificação no grau reservado poderá ser realizada por autoridades que exerçam funções de direção, comando ou chefia, de hierarquia equivalente ou superior ao nível DAS 101.5 [diretores de departamento], do Grupo-Direção e assessoramento superiores, de acordo com regulamentação específica de cada órgão ou entidade, assim como por todos os demais qualificados para a classificação em grau secreto e ultrassecreto (art. 27, III, da LAI).
A CGU não informou quantos servidores/entes públicos estariam hoje aptos a essa função. Em uma busca no Portal da Transparência do governo federal, a indicação é que há milhares de pessoas na esfera federal que, diante das regulamentações previstas, podem fazer a classificação destes documentos.
“Se vê gestores tentando transformar como regra [o sigilo] o que é prejudicial ao exercício do controle social. Órgãos de controle externo como Ministérios Públicos e Tribunais de Contas devem atuar para barrar um movimento ainda mais forte de retrocesso na transparência e no acesso à informação”, afirma o coordenador de projetos da Transparência Brasil, Cristiano Pavini.
O coordenador também alerta que a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), de 2021, passou a ser usada como justificativa para o decreto de sigilos ou negativa de informações de interesse público.
“A LAI e a LGPD não são conflitantes e a LGPD não pode ser usada como pretexto para limitar acesso às informações de interesse público. Há orientação e entendimento sobre isso, inclusive do próprio TCU e Tribunais de Contas dos estados”.Coordenador de projetos da Transparência Brasil, Cristiano Pavini
CGU diz que governo brasileiro tem quase 16 mil informações classificadas
A CGU informou à Gazeta do Povo que no rol de informações do governo federal constam 15.803 documentos classificados, conforme a a Lei de Acesso à Informação, que prevê sigilo em casos como risco à segurança da sociedade e do Estado e risco à soberania nacional. “As hipóteses de classificação estão previstas no art. 23 da LAI. Trata-se de rol exaustivo”, justifica.
Ainda de acordo com a pasta, as informações que se enquadrarem nesse rol devem ser classificadas nos graus reservado, secreto ou ultrassecreto, o que equivale, respectivamente, a um prazo de restrição de acesso de até cinco anos, 15 anos ou 25 anos. As informações ultrassecretas ainda podem ter sigilo prorrogado por mais 25 anos, mediante análise e aprovação da CMRI.
A CGU comenta que “os incisos I e II do caput do Art. 45 do Decreto nº 7.724/2012 estabelecem que a autoridade máxima de cada órgão/entidade publique, em sítio na Internet, o rol das informações desclassificadas e o rol das informações classificadas” e que, com a publicação da Resolução CMRI nº 7/2024 e da Instrução Normativa CGU nº 33/2024, determinou-se que a publicação dos róis de informações classificadas e desclassificadas deverá ser feita por meio do registro de dados no Sistema para Tratamento de Informações Classificadas, plataforma desenvolvida e gerenciada pela CMRI.”
“Temos vistos casos em que se decreta sigilo de 100 anos, a lei nem abre essa possibilidade. Isso por si só é uma ilegalidade. Não existe um documento que possa ficar sob sigilo por um século”Coordenador de projetos da Transparência Brasil, Cristiano Pavini
A reportagem tentou fazer uma varredura pelo site indicado, mas não houve precisão na busca com avaliação de diferentes pastas. A CGU disse que “os órgãos estão, no momento, em etapa de transição da forma de publicação dos róis e que enquanto não conseguem realizar o cadastro pelo sistema, o que requer um acesso específico de profissional credenciado conforme Decreto nº 7.845/2012, as repartições devem manter a publicação dos róis em seus sítios eletrônicos”.
O objetivo deste painel é que também seja possível visualizar a quantidade de informações desclassificadas por ano. “Pelo painel é possível se ter uma visão de parte dos documentos classificados, em todos os graus de sigilo, e inclusive acompanhar quantas informações cada órgão classificou ou desclassificou desde o início da vigência da LAI. Para informações completas, no entanto, é necessário verificar as páginas web dos órgãos que ainda não fizeram a publicação no sistema unificado”, indica.
Como fazer a varredura em cada pasta:
- É necessário entrar no portal de cada órgão ou Ministério;
- Acessar a seção “Acesso à Informação” dos sítios governamentais;
- Procurar as publicações realizadas na subseção “Informações Classificadas”.