A decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) de bloquear R$ 6 bilhões do Pé-de-Meia – programa do governo que dá bolsas para estudantes pobres concluírem o ensino médio – mobilizou a Advocacia-Geral da União (AGU) para contestar as suspeitas de irregularidade.
O órgão já recorreu da decisão e agora avalia também acionar a Justiça para liberar os recursos, que foram retidos a partir da verificação por técnicos do TCU. Eles suspeitam que o governo injetou dinheiro no programa fora do Orçamento.
Na avaliação do tribunal, além de ilegal e inconstitucional, a manobra permitiu ao Executivo efetuar despesas sem autorização e controle do Congresso, e ainda contornar as exigências da Lei de Responsabilidade e limites de gasto do arcabouço fiscal.
A situação levou a oposição a se mexer por um pedido de impeachment do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, já acusado por deputados de realizar uma “pedalada fiscal”, apelido dado a artifícios contábeis realizados no governo da ex-presidente Dilma Rousseff para fazer caixa com dinheiro de bancos públicos de forma oculta com o objetivo de disfarçar o aumento da dívida pública. Em 2016, Dilma foi destituída por crime de responsabilidade contra a lei orçamentária.
A AGU, que defende o governo, já recorreu ao TCU e agora avalia acionar a Justiça: por meio de um mandado de segurança junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), ou por meio de uma ação anulatória na primeira instância da Justiça Federal em Brasília.
O objetivo imediato é desbloquear os recursos do Pé-de-Meia, mas também defender a legalidade da forma como o programa é financiado – em parte, fora do Orçamento – e com isso esvaziar eventuais denúncias contra Lula passíveis de embasar um processo de impeachment.
O que o governo argumenta no TCU
Em seu recurso ao TCU, a AGU admite que parte do Pé-de-Meia é financiado fora do Orçamento da União, por meio de fundos privados. E defende essa forma de bancar as bolsas sob a justificativa de que ela foi aprovada pelo Congresso na lei que criou o programa.
A lei que criou o Pé-de-Meia prevê que ele seja pago por meio do Fipem, o Fundo de Incentivo à Permanência no Ensino Médio. Esse fundo, por sua vez, é abastecido com recursos de outros fundos geridos pelo governo, no caso:
- superávits financeiros do Fundo Social (que recebe dinheiro oriundo da venda de petróleo);
- verbas do Fundo de Garantia de Operações de Crédito Educativo (Fgeduc), criado em 2009 como avalista de empréstimos tomados por estudantes do ensino superior no Fies; e
- dinheiro do Fundo Garantidor de Operações (FGO), também criado em 2009, originalmente para garantir parte do risco dos empréstimos para micro, pequenas e médias empresas, microempreendedores e profissionais liberais.
O TCU verificou que, para pagamentos feitos em 2024, o Pé-de-Meia usou R$ 6,1 bilhões reservados no Orçamento de 2023 para o Fundo Social (o que contraria o princípio da anualidade orçamentária); e mais R$ 6 bilhões do Fgeduc. Este último valor, no entanto, foi transferido diretamente para o Fipem, sem passar pelo Tesouro e sem previsão no Orçamento de 2024. Na prática, este montante não foi aprovado pelo Congresso.
A AGU defende essa forma de alocar os recursos, argumentando que ela também foi usada no Fies, o programa de empréstimos dados a universitários para pagar mensalidades na faculdade; e no Pronampe, em que o governo amplia crédito para micro e pequenas empresas.
Diz, em suma, que por meio de fundos privados, o governo pode bancar programas com recursos públicos sem incluí-los no Orçamento. “Como os fundos têm patrimônio próprio, que não se confunde com o da União, há que se reconhecer que as despesas da União são da União, e despesas dos fundos são dos fundos” diz um memorial da AGU entregue ao TCU.
Para o TCU, isso viola a lei e a Constituição, porque o programa de bolsas é público, usa recursos controlados pela União e destina-se a uma política pública de educação. Por isso, técnicos do tribunal chegaram a chamar a manobra de “orçamento paralelo”.
O governo diz que a lei do Pé-de-Meia, aprovada pelo Congresso, já deixava claro que o dinheiro viria de um “fundo privado”, e por isso, houve prévia autorização do Legislativo.
“É ilegal o resgate de cotas do FGO e do FGEDUC para posterior aporte no FIPEM, por ausência de autorização legislativa para que a União realize essa operação”, argumentou a AGU em seu recurso, em referência à recomendação de que os recursos passassem pelo Orçamento.
AGU também pode acionar STF
Internamente, a AGU já determinou que a Secretaria-Geral de Contencioso analise a possibilidade de contestar a decisão do TCU na Justiça. Isso pode ser feito junto ao STF, por meio de um mandado de segurança, ou de uma ação anulatória na primeira instância da Justiça Federal. O órgão deve reproduzir os argumentos já apresentados ao TCU.
Eventual decisão da Justiça que libere os pagamentos do Pé-de-Meia, por meio de fundos privados, tende a esvaziar denúncias contra Lula ou integrantes do governo por crime de responsabilidade – no caso do presidente, uma condenação pelo Congresso implica em impeachment.
Antes de uma decisão do STF ou da Justiça, o próprio TCU, de qualquer modo, deu ao governo a oportunidade de defender, juridicamente, a regularidade do uso dos fundos no Pé-de-Meia.
Além disso, a área técnica antecipou que, se atender às exigências do tribunal, o governo poderá corrigir o problema apontado. “Possíveis ações corretivas poderão ser tomadas para prevenir ou corrigir os indícios de irregularidades detectados ou remover seus efeitos”, diz o relatório da auditoria do TCU.
O julgamento final sobre a regularidade ou não do procedimento será realizado na análise de mérito, que ainda não tem data para ocorrer, no plenário do TCU.
“A sua manifestação quanto às alternativas para corrigir os indícios de irregularidades verificados e quanto aos impactos das possíveis medidas a serem adotadas pelo TCU será avaliada na proposição de mérito”, diz a decisão do ministro Augusto Nardes, relator da fiscalização e autor da decisão que bloqueou o Pé-de-Meia.