O Ministério dos Direitos Humanos lançou, em conjunto com a ONG Aliança Nacional LGBTI+, uma plataforma com o objetivo de responsabilizar judicialmente autores de publicações consideradas desinformação ou discurso de ódio contra gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e demais “identidades de gênero”.
O projeto, que custou R$ 300 mil, foi financiado por emenda parlamentar da deputada federal Érika Hilton (PSOL-SP). A chamada “Plataforma do Respeito” consiste em uma ferramenta de inteligência artificial denominada Aletheia que se propõe, conforme consta no site oficial, a “rastrear as origens da desinformação, denunciar seus impactos e viabilizar a responsabilização de autores e disseminadores”.
O site da Aletheia (aletheiaverifica.com) descreve o projeto inicialmente como um sistema de checagem de fatos. “Ao longo de 18 meses de execução, a Plataforma do Respeito funcionará como uma agência de checagem híbrida, reunindo profissionais de direito e comunicação. Nossa missão é combater a disseminação de notícias falsas e conteúdos enganosos nas redes sociais, contribuindo para um ecossistema digital mais saudável e confiável”.
No entanto, no evento de lançamento da plataforma, que aconteceu em Brasília no dia 16 de setembro, o coordenador da “Plataforma do Respeito”, Jean Muksen, explicou que o foco da iniciativa é fazer um monitoramento ininterrupto de perfis e veículos na tentativa de identificar conteúdos considerados “problemáticos” e, a partir daí, denunciar criminalmente seus autores.
“Basicamente o que nós criamos: uma plataforma de diversas ferramentas de Inteligência Artificial que realiza automaticamente um monitoramento contínuo de páginas, perfis, sites, blogs e todo tipo de conteúdo virtual atualmente”, disse Muksen.
Segundo ele, a ferramenta faz análise de discurso e de intenções em vídeos, áudios e textos. “Conseguimos perceber algumas nuances que são naturais do idioma português em relação ao uso da ironia, sarcasmo e outros pormenores que métodos tradicionais não conseguem detectar de forma automática”.
O representante da Aliança LGBTI+ explica que, assim que identifica uma suposta fake news ou uma publicação com suposto discurso de ódio, a plataforma armazena o conteúdo num repositório para eventualmente levar o caso à Justiça – a decisão por fazer ou não denúncia ao Ministério Público acontece após análise do advogado contratado pela ONG.
“Estamos monitorando basicamente todos os perfis de todos os parlamentares do Congresso e das assembleias legislativas dos estados atualmente. Além disso influenciadores, blogs, sites de notícias – tem uma lista gigantesca”, afirmou Muksen.
O sistema da “Plataforma do Respeito” foi desenvolvido por uma startup. Já a equipe permanente, contratada pela Aliança LGBTI+, conta com quatro integrantes: um coordenador, um advogado, um jornalista e um designer. O custo anual para a manutenção da equipe é de R$140 mil.
ONG afirma ter identificado 500 postagens com “potencial discurso de ódio” em 9 dias
Segundo o coordenador do projeto, o monitoramento, que começou em agosto, reuniu 842 postagens de perfis nas redes sociais que tiveram “indícios” de desinformação ou discurso de ódio em apenas nove dias, a título de teste.
“Nesse conteúdo todo, identificamos 497 potenciais discursos de ódio e 61 notícias falsas”, disse o representante da Aliança Nacional LGBTI+, emendando que a ferramenta também identifica “padrões” de desinformação ou ódio em discursos opinativos, como artigos em sites de notícias.
Monitoramento pode representar “perigoso controle de narrativas”, alerta jurista
Para Giuliano Miotto, advogado e diretor-presidente do Instituto Liberdade e Justiça (IJL), a criação do sistema de monitoramento por iniciativa do governo federal gera um efeito inibidor claro sobre a liberdade de expressão.
“A mera ciência de que um órgão esteja catalogando e observando o debate público sobre temas sensíveis pode levar as pessoas a se autocensurarem, temendo rotulações, investigações ou penalidades de todo o tipo”, diz o jurista.
“Um sistema como esse também pode ser utilizado como ferramenta de silenciamento seletivo de vozes do debate público e eliminação de críticos à ideologia de gênero, por exemplo, da ‘praça pública’ que hoje é representada pelas redes sociais. Ao fim, pode levar até mesmo à perda de mandatos políticos, cancelamentos ou prisões”, aponta.
Miotto explica que a intervenção do Estado só é legítima e constitucional quando a manifestação cruza a linha do crime, como no caso do discurso de ódio (incitação à violência ou discriminação) ou em campanhas de desinformação intencionais e coordenadas que comprovadamente busquem manipular o processo democrático ou gerar grave risco à saúde pública.
“A atuação que extrapola esses limites, ao tentar controlar o que o público deve ou não acreditar, configura o perigoso controle de narrativas, que é a antítese do que deveria ser um Estado Democrático de Direito”, reforça.
Governo quer ampliar uso da ferramenta
Como a legislação proíbe que parlamentares repassem recursos diretamente a entidades privadas, o fluxo precisa passar por um órgão público – no caso da plataforma em questão, o escolhido foi o Ministério dos Direitos Humanos, que será responsável por aplicar os recursos da emenda e monitorar a execução do projeto.
A representante do governo que irá supervisionar o convênio é Symmy Larrat, uma ativista trans com longo histórico de atuação em governos petistas. Symmy, que chefia a Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, integrou a Secretaria de Direitos Humanos no governo de Dilma Rousseff (PT) e retornou em 2023, com a volta de Lula à presidência.
No evento de lançamento da plataforma, a ativista disse que o governo estuda ampliar o uso da ferramenta para o “enfrentamento ao discurso de ódio”. “Esse é um formato que pode ser replicado para qualquer ‘ameaça’. Queremos conectar essa experiência ao restante do ministério para ver como podemos absorver isso como uma política pública para além de um projeto”, disse.
Outro lado
O termo de fomento do governo federal para financiar o projeto não menciona chamamento público para demais entidades, o que pode caracterizar escolha direcionada pela ONG Aliança Nacional LGBTI+. A reportagem questionou o Ministério dos Direitos Humanos sobre os motivos para não abrir disputa, mas a pasta não se manifestou.
A Gazeta do Povo também enviou à ONG questionamentos em relação aos dados reunidos até agora, em especial sobre as denúncias apresentadas ao Ministério Público, e quanto a aspectos financeiros do convênio.
Em nota. a Aliança Nacional LGBTI+ informou que desde sua implementação, em agosto, a plataforma já analisou mais de mil conteúdos e monitora atualmente aproximadamente 1.500 perfis públicos, especialmente autoridades e influenciadores digitais de grande alcance.
“Todos os processos conduzidos pela Aliança Nacional LGBTI+ seguem rigorosos critérios técnicos e jurídicos, com publicidade integral dos editais e comprovação de capacidade técnica, assegurando lisura e responsabilidade no uso dos recursos públicos”, disse a entidade.