Judiciário permite postagens de traficantes mas cala a direita nas redes

A megaoperação deflagrada na semana passada no Rio de Janeiro contra o Comando Vermelho trouxe de novo à tona um paradoxo do Judiciário brasileiro no tratamento da liberdade de expressão: enquanto alvos do Supremo Tribunal Federal (STF) ligados à direita seguem proibidos de se manifestar nas redes sociais e de conceder entrevistas, traficantes famosos e pessoas vinculadas ao crime organizado mantêm presença digital ativa, fazem até transmissões ao vivo e dão entrevistas a meios de comunicação.

Pouco antes da operação, criminosos que foram mortos nos confrontos com a polícia publicavam normalmente nas redes sociais. É o caso, por exemplo, de uma traficante de nome Penélope, conhecida como “Japinha do CV”, que tinha milhares de seguidores e cujas postagens exibindo fuzis circularam nas redes sociais após sua morte na operação; ou de Yago Ravel Rodrigues, que se exibia na internet portando fuzis em áreas públicas.

A tolerância com o crime organizado não se limita a figuras menores das facções. Márcio Nepomuceno, o Marcinho VP, líder histórico do Comando Vermelho, tem um perfil ativo no Instagram com seu nome. A página é mantida por pessoas próximas ao criminoso, que está preso.

Recentemente, o perfil fez diversas postagens para divulgar um livro escrito por Márcio, que virou destaque na Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). Além disso, o líder do tráfico solicitou ao STF autorização para conceder entrevista à TV Record sobre os desdobramentos da operação. Ele já deu uma entrevista à mesma emissora em 2018.

Enquanto isso, figuras públicas como o ex-deputado Daniel Silveira, condenado por suas falas sobre o STF, está até hoje com as contas nas redes sociais bloqueadas e não foi autorizado a dar entrevistas. Ao contrário de Marcinho VP, que pode até ter seu livro divulgado nas redes, Silveira segue censurado.

O mesmo padrão tem sido aplicado aos réus do 8 de janeiro de 2023 participantes dos atos em Brasília que terminaram em depredação do patrimônio público.

“Essa patente diferença de tratamento acaba fortalecendo enormemente a ideia de que os processos sobre os atos do 8/1 integram um grande ‘show trial’, um julgamento espetáculo, em que o propósito não é o de punir os julgados na medida de suas condutas, mas de dar exemplo público à sociedade e, sobretudo, um específico segmento político dela, de modo a desestimular qualquer tipo de insurgência semelhante”, afirma o jurista Fabricio Rebelo, coordenador do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes).

Filipe Martins, ex-assessor especial da Presidência, embora ainda não tenha sido condenado, também não pode se manifestar em redes sociais nem conceder entrevistas. No caso de Martins, o Supremo censurou jornais ao negar entrevistas solicitadas por Folha de S.Paulo, Poder360 e Gazeta do Povo, sob o argumento de que a fala pública do ex-assessor de Bolsonaro poderia tumultuar o processo.

As medidas têm sido impostas por decisões do ministro Alexandre de Moraes com base em interpretações expansivas dos dispositivos sobre medidas cautelares do Código de Processo Penal.

As decisões contrastam com precedentes conhecidos em que o próprio Judiciário autorizou conversas de jornalistas com membros de facções criminosas, incluindo seus líderes. Fernandinho Beira-Mar, por exemplo, já foi personagem de entrevistas televisionadas em diversas ocasiões.

O ex-presidente Jair Bolsonaro, antes mesmo de ter sido condenado, foi proibido de postar nas redes sociais seja com suas próprias contas, seja por meio dos perfis de terceiros. Em julho deste ano, após o ex-presidente participar online de um evento em que decisões do STF eram criticadas, Moraes entendeu que, mesmo sem estar conectado a plataformas digitais com suas próprias contas, Bolsonaro estaria descumprindo a determinação por ter falado via redes de outras pessoas.

“Quase nada do que se colhe dos processos sobre os ditos ‘atos golpistas’ se sustenta, seja nas condenações, seja em sua condução, o que inclui a imposição de medidas restritivas sem nenhuma base”, diz Rebelo.

Leniente com traficantes, Judiciário criou crime à parte para impedir que a direita faça política, afirma jurista

A censura prévia a pessoas da direita não se limita a quem foi condenado pelo STF ou está sob medidas cautelares. Ela tem sido aplicada até contra parlamentares em exercício de mandato.

Levantamento publicado pela Gazeta do Povo mostra que ao menos 13 deputados e senadores já tiveram perfis bloqueados por decisão judicial desde 2019. Alguns deles nem sequer estão nos inquéritos do Supremo.

A lista de vítimas de censura prévia inclui parlamentares como os deputados Otoni de Paula, Nikolas Ferreira, Gustavo Gayer, Coronel Tadeu, Major Vitor Hugo, José Medeiros, Bia Kicis e Cabo Junio Amaral. Os bloqueios ocorreram sob a alegação de que futuras publicações deles poderiam representar risco à ordem pública ou à credibilidade das instituições.

Traficantes e outros alvos de investigações relacionadas ao crime organizado não recebem tratamento semelhante. A advogada e influenciadora Deolane Bezerra, por exemplo, mantém atualmente um perfil no Instagram com mais de 22 milhões de seguidores – número superior, por exemplo, ao de Nikolas Ferreira. Mesmo após virar alvo de investigação da Polícia Civil do Rio de Janeiro por suposta relação com traficantes e da Polícia Federal por envolvimento com apostas ilegais, ela não foi impedida de postar.

Em fevereiro de 2024, Deolane exibiu nas redes sociais um cordão de um chefe do tráfico do Complexo da Maré, bairro da zona norte do Rio de Janeiro. Em setembro de 2024, ela foi alvo da Operação Integration, sobre lavagem de dinheiro ligada a jogos e apostas ilegais. Na mesma época, reportagem do SBT mostrou relatórios do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) citando transferências bancárias de uma cunhada do traficante Marcola para contas ligadas a Deolane.

Em todo este tempo, nunca houve decisão judicial que a impedisse de se manifestar ou que lhe impusesse cautelares relacionadas a redes sociais. Ela preservou seus milhões de seguidores e sua liberdade de expressão intactas.

“Até mesmo pessoas que estão encarceradas com condenações definitivas por crimes gravíssimos têm direito a se manifestar, a dar entrevistas, a escrever cartas, a se comunicar com seus advogados e com parentes e assim por diante. A liberdade de expressão é tão soberana que mesmo quem está encarcerado tem direito a ela. Mas, para políticos, sobretudo políticos de direita ou pessoas que agem politicamente na direita, isso é tratado como um crime à parte, para impedir que elas sigam fazendo política”, comenta o advogado André Marsiglia, especialista em liberdade de expressão. “Em tese, os crimes comuns deveriam ser mais severamente punidos do que crimes decorrentes da política”, acrescenta.

Para ele, “o que se quer ao cercear o direito às redes sociais, a entrevistas ou à liberdade de expressão é criar uma punição específica, uma punição à parte”, direcionada só a pessoas da direita, “para condená-las a não mais poder exercer suas funções políticas de convencimento”.

Marsiglia recorda que, se a lógica aplicada à direita fosse generalizada, a esquerda já teria sofrido nas mãos do STF, o que evidencia uma aplicação enviesada da lei. “Vamos lembrar que o Lula pôde dar entrevista quando esteve preso e que também não houve nenhuma punição desse tipo a manifestantes de esquerda quando tomaram prédios públicos, com atos do MST e coisas do gênero.”

Crédito Gazeta do Povo

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