Jurista dinamarquês acusa Moraes de “necrofilia” intelectual com obra de John Stuart Mill

Em análise dura, Jacob Mchangama, autoridade global em liberdade de expressão, afirma que ministro do STF distorce precedentes legais e filosóficos para justificar censura no Brasil.

Em uma crítica contundente às recentes decisões do Judiciário brasileiro sobre liberdade de expressão, o renomado jurista dinamarquês Jacob Mchangama acusou o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, de má interpretação e distorção de princípios fundamentais tanto da filosofia liberal quanto da jurisprudência internacional.

Durante uma entrevista ao Portal Claudio Dantas na quinta-feira, Mchangama, fundador da The Future of Free Speech Foundation e professor na Universidade Vanderbilt, usou termos fortes para descrever o que considera um “vandalismo” do pensamento de John Stuart Mill, chegando a classificar a apropriação das ideias do filósofo por Moraes como um ato de “necrofilia” intelectual.

O ponto mais incisivo da análise de Mchangama ocorreu ao discutir a fundamentação usada por Moraes para justificar o banimento da plataforma de mídia social Rumble no Brasil. Segundo o especialista, a invocação do filósofo britânico John Stuart Mill, autor da obra seminal “Sobre a Liberdade”, foi feita de forma a subverter completamente o propósito do autor.

“Senti que [Moraes] estava cometendo um ato de necrofilia, desenterrando o corpo de John Stuart Mill para, então, vandalizar o ponto principal de sua obra”, declarou Mchangama. Ele explicou que, ao contrário do que a decisão do ministro sugere, Mill era um defensor da livre circulação de ideias, mesmo as comprovadamente falsas. “Mill defendia que mesmo informações falsas e ideias erradas não deveriam ser proibidas, pois o choque de opiniões leva a uma perspectiva mais clara”. Mchangama ressalta que o famoso “princípio do dano” de Mill se referia a danos muito específicos e diretos, não ao conceito vago de “desinformação” ou “ideias erradas” que permeia os debates atuais.

A crítica de Mchangama, no entanto, não se limitou ao campo da filosofia. Ele apontou uma segunda distorção grave na argumentação de Moraes: a citação de um precedente da Suprema Corte dos Estados Unidos de 1919 para validar sua decisão. O jurista dinamarquês esclareceu que essa decisão, que permitiu ao governo americano punir protestos pacíficos e encarcerar cidadãos, é amplamente considerada um “episódio vergonhoso” na história jurídica americana e foi “derrubada há muito tempo”.

Ele contrapôs o antigo precedente com a posição consolidada da Suprema Corte americana hoje, que, segundo ele, “deixou claro que a liberdade de expressão protege informações falsas, exceto em circunstâncias muito específicas” e bem delineadas, que não se aplicariam ao caso em questão.

Mchangama expressou profunda preocupação com o que essas distorções representam. Para ele, o fato de um juiz de uma corte suprema “interpretar mal” figuras como Mill e citar como referência um precedente revertido e desacreditado é alarmante. A situação levanta uma questão sobre a motivação por trás da decisão. “Fico na esperança de que seja ignorância, e não uma manipulação consciente”, afirmou, sugerindo que, ironicamente, a própria decisão judicial poderia ser vista como um “exercício de fake news”.

A análise do especialista internacional joga luz sobre a tensão vivida no Brasil e em outras democracias: o esforço para combater campanhas de desinformação e ataques às instituições, e o risco de, nesse processo, erodir os próprios alicerces da liberdade de expressão que sustentam o sistema democrático. A intervenção de Mchangama serve como um lembrete de que as ferramentas usadas para defender a democracia devem, elas mesmas, ser democraticamente sólidas e intelectualmente honestas.

Mchangama esteve no Brasil para lançar a versão em português de seu livro sobre a história global da liberdade de expressão. A obra foi lançada pelo Instituto Sivis, com tiragem de 500 exemplares para distribuição gratuita.

Crédito Claudio Dantas

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