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Lula se revolta com modelo de “corporation” de ex-estatais, em que não consegue interferir

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem demonstrado inconformidade com o modelo de “corporation” (corporação) adotado por ex-estatais nas quais o governo ainnda tem participação acionária, como a Eletrobras, e outras em que ele já não é acionista mas tenta interferir, caso da Vale.

Em relação à mineradora, Lula deixou clara sua insatisfação após a nomeação do novo presidente, Gustavo Pimenta, pelo conselho de administração. O petista afirmou que a empresa era como “um cachorro com muitos donos”.

“A Vale antes tinha uma diretoria, eu sabia quem era o presidente. Hoje não tem dono, é uma tal de corporation com gente que tem 2%, 3%, como cachorro de muito dono, que morre de fome, de sede, porque todo mundo pensa que colocou água, que deu comida, e ninguém colocou”, afirmou Lula.

A indignação do presidente se deve ao insucesso de influenciar os rumos da companhia, após tentativas reiteradas de emplacar o ex-ministro Guido Mantega como presidente.

Durante o processo de sucessão, Lula pressionou os conselheiros por meio de aliados e usou redes sociais para acusar negligência da empresa nos processos de indenização das vítimas.

Não adiantou. Graças ao modelo de corporação, o presidente não conseguiu furar as regras de governança da empresa, e o conselho elegeu um presidente oriundo de quadros internos.

“O modelo [de “corporation”] se baseia nos mais altos níveis de governança corporativa voltada a dar retorno para todos os ‘stakeholders’ [partes interessadas] do negócio”, explica Geraldo Affonso Ferreira, executivo e experiente conselheiro de administração. “No caso de estatais privatizadas ou empresas em que o governo participa, serve para proteger a empresa de interesses políticos de ocasião.”

O que são as corporações

As corporações têm raízes nos Estados Unidos e no Reino Unido, no início do século passado, quando grandes indústrias precisavam atrair recursos de investidores externos por meio da emissão de ações no mercado de capitais.

Desde então, a estrutura foi sendo aperfeiçoada e se consolidou como padrão global para o crescimento sustentável e atração de investidores.

Com controle acionário pulverizado – sem um controlador ou um bloco dominante – a administração profissional prima por maximizar os resultados para todos. Para isso são fundamentais transparência, responsabilidade e prestação de contas, consolidadas no que se chama de boas práticas de governança corporativa.

Não há uma regra formal que defina uma “corporation”; o rótulo é mais uma convenção de mercado. Mas o critério mais difundido para identificação é a quantidade de ações em livre circulação nas bolsas de valores, o chamado “free float”. Quanto maior, melhor.

Os segmentos de listagem de mais alto nível de governança corporativa no Novo Mercado da B3 têm por regra o patamar mínimo de 20% de ações em circulação.

Levantamento do Broadcast Dados, com 331 empresas negociadas e acompanhadas pela plataforma de informações em tempo real, mostra que 42% delas têm “free float” acima de 50%. E o total de empresas com o índice superior a 90% é de cerca de 13% da amostra.

Essas últimas se autodenominam “true corporation”, para se diferenciar das demais sem controle definido e destacar o alto patamar de ações em negociação. É o caso da gigante atacadista Assaí, com 100% das ações negociadas livremente na bolsa.

Vale é expoente do modelo de corporation no país

No Brasil, o modelo começou a ganhar força a partir da década de 1990, com a abertura econômica e a privatização de empresas estatais

As pioneiras foram a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), privatizada em 1993, e a Embraer, em 1994 – esta se tornou uma das maiores fabricantes de aeronaves do mundo adotando práticas de governança robustas.

Entre as empresas privadas, a dianteira cabe à Ambev, formada pela fusão de Brahma e Antarctica em 1999. Hoje, grandes bancos como Itaú e Bradesco percorrem o caminho, assim como empresas de varejo, como Renner e Natura, reconhecidas pelos altos padrões de governança.

Entre todas, a Vale, segunda maior empresa do país e que deixou de ser estatal em 1997, é hoje a mais identificada com o rótulo. O governo tem participação apenas indireta na empresa, por meio de sua influência política sobre a Previ – o fundo de previdência dos funcionários do Banco do Brasil, que não é um órgão ou empresa pública e formalmente não é sobordinado ao Executivo federal.

O fundo é um dos “acionistas de referência”, como são chamados os blocos acionários com mais de 5% de participação, que podem se compor para determinar uma decisão. Entre eles estão também o fundo privado Blackrock, um dos maiores do mundo, e a gigante de energia Mitsui.

Esta estrutura, com acionistas de referência, é a mais indicada para ex-estatais, segundo Richard Blanchet, do Blanchet Advogados, especializado em projetos de Governança Corporativa, porque permite a composição dos interesses, sem sobreposição de uma das partes.

“Não se trata de ‘muitos donos’, como disse o presidente, mas de sócios atentos que precisam entrar em acordo visando os melhores caminhos para a companhia”, diz o advogado.

O mesmo sistema, com acionistas relevantes, existe na Eletrobras, privatizada em 2022, embora o controle seja mais pulverizado. Para reforçar as práticas de governança, a própria lei de desestatização da companhia limitou o poder de voto dos acionistas a 10%.

O governo, que detém 42% das ações ordinárias da Eletrobras, questionou o projeto. Lula quer mais cadeiras no Conselho de Administração da empresa e recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF). O imbróglio persiste há mais de um ano, e a Corte vem prorrogando o prazo para uma conciliação entre as partes.

Controlador definido requer cuidado em estatais

As corporações se contrapõem às empresas com controlador definido, sejam privadas ou estatais, que têm o poder de decisão concentrado no dono ou no governo.

“Embora possa haver maior celeridade das decisões por meio do controle majoritário, os interesses particulares podem se sobrepor ao que é mais indicado para o negócio.”

É o que acontece, por exemplo, na Petrobras, onde o governo é controlador. A estatal também é considerada “corporation”, com práticas de governança avançadas e ações negociadas em bolsas de valores, como a brasileira B3 e a americana NYSE.

No entanto, com controle acionário, o governo consegue ter poder de determinar os rumos da empresa.

“Apesar da governança, o governo indica a maioria dos conselheiros de administração, que vão seguir suas orientações”, explica Ferreira.

Para ele, independente de capital privado ou estatal, uma das soluções apontadas para aprimorar a gestão das corporações é aumentar o número de conselheiros independentes, aqueles membros do conselho que não têm vínculo com a administração ou acionistas majoritários.

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que disciplina e fiscaliza a atuação no mercado de capitais, estabelece que as companhias listadas devem ter, no mínimo, dois conselheiros ou 20% de conselheiros independentes – o que for maior.

“Aumentar os independentes significa ter mais imparcialidade nas votações para decidir o que é melhor para a empresa”, afirma.

Modelo enfrenta desafios no Brasil

Embora consolidado no mundo, o modelo de corporações enfrenta desafios específicos no Brasil. Uma dos problemas do sistema, apontado por analistas, é o risco de a empresa ser “sequestrada” por interesses de minoritários.

Nos últimos anos, várias companhias que passaram por problemas após optarem por pulverizar o capital. É o caso das incorporadoras Gafisa e PDG, a empresa de resseguros IRB, a varejista Casas Bahia, a operadora Oi e a gigante de alimentos BRF.

Além disso, os números alertam para o desempenho do modelo. Um levantamento da gestora de recursos Alphakey sobre as contribuições para o IBX 100 (indicador do desempenho médio das cotações dos 100 ativos mais negociados) mostra que, nos últimos dez anos, das 20 empresas que mais contribuíram positivamente com o índice, apenas cinco são corporações.

Por outro lado, das 20 companhias que mais pesaram negativamente no IBX 100, 15 delas não têm controlador definido.

A Alphakey não aponta causas, mas suspeita que o fato se deve a diferenças culturais de gestão no país. Em carta enviada aos cotistas, a gestora sugere que há uma tendência maior para valorizar relações pessoais e evitar conflitos, o que pode dificultar a implementação de práticas de governança corporativa que exigem impessoalidade e rigor.

Além disso, destaca que, em muitos casos, a remuneração dos executivos não está diretamente ligada ao desempenho da empresa, resultando em prejuízos aos acionistas no longo prazo.

Para Ferreira, os problemas acontecem não por deficiência do modelo, mas dos envolvidos. “Acionistas mais relevantes podem, por vezes, ter outros interesses que não o desenvolvimento da empresa e, ‘puxam a brasa para sua sardinha’”, diz.

O ponto central, segundo ele, é o atendimento ao conceito de “stewardship”, ou seja, a responsabilidade dos gestores de recursos de terceiros, como os fundos públicos e privados que detêm participação acionária nas corporations.

Ferreira destaca que, dos mais de 900 “assets” (fundos) que participam do mercado brasileiro, apenas 23 são signatários do Código Brasileiro de Stewardship (CBS), que consolida os parâmetros de atuação.

“Não há nenhuma cultura de dever fiduciário sobre recursos administrados”, afirma. “Além disso, a CVM não tem os mesmos recursos da SEC [sua equivalente norte-americana] nem conta com a agilidade do sistema judiciário para punir irregularidades.”

Segundo o conselheiro, a própria Previ, acionista da Vale, era assinante do CBS. Em 2023, cancelou sua inscrição.

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