Se o Congresso não agir conforme o STF espera, a Corte já tem em mãos uma alternativa para fazer valer sua vontade: o novo Código Civil.
Ao derrubar, no fim de junho, a regra do Marco Civil que exigia ordem judicial para remover conteúdo nas redes, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou que sua intervenção seria provisória, até que o Congresso legislasse sobre o tema. Mas, se o Congresso não agir conforme o STF espera, a Corte já tem em mãos uma alternativa construída com influência sua para transformar suas ideias em lei: o novo Código Civil.
Na sessão de abril de 2024 em que o anteprojeto do novo Código foi entregue ao Senado, a presença do ministro Alexandre de Moraes ao lado do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), autor do documento, não foi casual: simbolizou o endosso do Supremo e de seu membro com maior poder político a um texto que traduz com precisão a visão do STF sobre o controle do discurso nas redes. A marca de Moraes e de outros ministros está especialmente presente no novo livro que trata do Direito Digital.
Essa parte do novo Código repete e amplia o que o STF decidiu por conta própria no fim de junho. Prevê, por exemplo, a derrubada do artigo 19 do Marco Civil. Se aprovado, transforma em lei o que hoje é apenas jurisprudência.
O documento pode servir, portanto, como uma garantia para os ministros: se o Congresso não aprovar uma nova lei ou se aprovar algo diferente do que eles desejam, o conteúdo do novo Código Civil – que, por sua natureza, tende a ser duradouro e menos suscetível a mudanças – já estará pronto como alternativa para cumprir o mesmo papel da decisão do tribunal.
Membros do STF estiveram envolvidos, nos bastidores, na elaboração do documento de Pacheco. A comissão de juristas responsável pela proposta foi presidida pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luis Felipe Salomão e contou com participação de figuras próximas aos ministros, como Rodrigo Mudrovitsch, que já foi advogado de Gilmar Mendes.
Ministros da Corte estiveram presentes em momentos-chave da tramitação do documento. Além de ter ficado ao lado de Pacheco na apresentação do anteprojeto no ano passado, Moraes também foi, em abril deste ano, ao lançamento do livro sobre a elaboração do projeto organizado por Pacheco, aparecendo novamente lado a lado com o senador em fotos. Os ministros Flávio Dino e Ricardo Lewandowski compareceram ao mesmo evento, endossando publicamente o conteúdo da proposta.
Em abril de 2024, Edson Fachin e Moraes foram a Buenos Aires para um seminário dos membros da comissão de juristas responsável pela elaboração do anteprojeto do novo Código Civil brasileiro, em parceria com juristas que produziram o novo Código Civil argentino.
Em discurso no evento, Moraes adotou o mesmo tom que costuma usar para justificar medidas de censura no Brasil. “O Direito tem que achar um meio termo para evitar a anomia, mas também evitar a insegurança jurídica; é o grande desafio dessa comissão. Ponto específico que me parece muito importante é a necessidade, no campo da responsabilidade civil, de regulamentação das Big Techs, das redes sociais, daqueles que hoje se sentem absolutamente impunes. É uma terra de ninguém. E o Direito Civil, principalmente aqui, não pode permitir isso”, afirmou, de acordo com a revista jurídica Justiça & Cidadania.
Decisão do STF tem vários pontos de convergência com projeto do novo Código Civil
A decisão do STF sobre o artigo 19 espelha em vários aspectos o projeto do novo Código Civil. A relação dos dois é tão umbilical que o relator do julgamento no Supremo, Dias Toffoli, citou o projeto em seu voto, como uma inspiração; e, por sua vez, o presidente da comissão de juristas do projeto do Código, Luis Felipe Salomão, destacou em um artigo recente no site Conjur a menção de Toffoli ao documento, como uma das provas de que o projeto estaria maduro para tramitar no Congresso.
Na decisão sobre o artigo 19, a Corte estabeleceu que provedores de aplicação podem ser responsabilizados civilmente por danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros, mesmo sem ordem judicial, quando houver descumprimento de “deveres de cuidado”. A justificativa foi a inércia legislativa.
O Congresso, segundo o STF, estaria sendo omisso ao não atualizar a regulação, deixando de fazer frente aos novos desafios tecnológicos. Isso teria aberto espaço para a atuação da Corte, de acordo com a narrativa reiterada em diferentes ocasiões por seu presidente, Luís Roberto Barroso. Até que o Legislativo se manifeste, vale o que ficou fixado no julgamento.
O projeto do novo Código Civil segue o mesmo caminho ao revogar expressamente o artigo 19 do Marco Civil. Ambos os textos impõem às plataformas digitais, portanto, o dever de agir proativamente diante de conteúdos considerados ilícitos, estabelecendo que a simples notificação extrajudicial pode gerar obrigação de remoção.
Além disso, tanto o projeto do Código Civil como a tese do STF atribuem às plataformas obrigações de auditoria, avaliação de riscos sistêmicos e mecanismos internos de controle, impondo a elas parte da responsabilidade de moderar o debate público online.
O projeto do novo Código Civil, no entanto, vai além da tese do STF ao introduzir mecanismos que reabilitam o chamado “direito ao esquecimento”, declarado incompatível com a Constituição pelo próprio Supremo em 2021, e a possibilidade de desindexação de conteúdos, abrindo brecha para que informações legítimas e verdadeiras sejam escondidas de mecanismos de busca.
Essas mudanças poderiam abrir caminho para a reescrita seletiva do passado, com risco de apagamento de registros de interesse público, como reportagens sobre corrupção, sobre abusos do Judiciário ou sobre a história da operação Lava Jato.
Ao contrário de propostas como o PL 2630, que demandam tramitação específica e enfrentaram resistência política no Congresso, o livro do Direito Digital digital pode acabar passando despercebido como parte de um pacote, já que está embutido no projeto do novo Código Civil.
De acordo com o site Jota, o advogado Flávio Tartuce, relator do anteprojeto que foi entregue ao Senado no ano passado e amigo pessoal de Pacheco, espera que o projeto seja aprovado antes das eleições de 2026. Em sua participação no Gilmarpalooza, Pacheco anunciou que o presidente do Senado Davi Alcolumbre se comprometeu a formar uma comissão para dar continuidade ao projeto no início de agosto.
O discurso oficial da comissão de juristas é de que o texto do projeto somente consolida entendimentos já firmados pelos tribunais ao longo dos últimos anos. No entanto, o conteúdo das propostas para o campo do Direito Digital traz, assim como a decisão do STF, ainda mais riscos do que o PL 2630, que não foi aprovado pela Câmara em 2023 justamente por causa do alerta da oposição de que ele poderia abrir brechas para a censura.