Por Flávio Gordon
Num país governado por técnicos que se dizem infalíveis, insistir na soberania popular é um ato de insubordinação democrática
A notícia de que Flávio Bolsonaro foi apontado pelo pai para disputar a Presidência da República em 2026 foi recebida, como era previsível, com espasmos de indignação moral e muxoxos “pragmáticos” sobre sua suposta inviabilidade. Não se trata, porém, de mais um capítulo da novela eleitoral brasileira, mas de um sintoma político de ordem mais profunda. Sua simples cogitação como candidato já funciona como provocação ao regime informal — ilegal, imoral e ilegítimo — que se consolidou no país: o governo dos especialistas de toga, que decidiu banir a política (de direita) em nome da “técnica”.
Ao contrário do que se diz, o Brasil não vive uma democracia polarizada; vive uma pseudodemocracia tutelada, onde a polarização é vista como doença a ser curada pelo pensamento único. A política, entendida como disputa legítima de valores entre cidadãos livres, foi progressivamente substituída por um simulacro técnico-jurídico, no qual decisões essencialmente morais são tomadas por castas auto-investidas de neutralidade científica. É a juristocracia — a versão tropical da tecnocracia moderna — que governa por despachos, interpretações criativas e exceções permanentes, sempre em nome do “Estado democrático de direito”.
Nada disso é acidental. Nos anos 1940, Georges Bernanos já advertira que a tentação totalitária moderna não se apresentava necessariamente sob a forma do terror explícito, mas como a promessa de uma administração racional do mundo, livre dos riscos da liberdade humana. Mais ou menos na mesma época, Ortega y Gasset completou o diagnóstico: quando a técnica deixa de ser instrumento e passa a ditar os fins, a política se torna um estorvo.
O tecnocrata, como mostrou empiricamente Robert Putnam, odeia o conflito e despreza a democracia aberta. Para ele, discordar é sinal de ignorância; deliberar é perda de tempo. No Brasil, esse tipo psicológico encontrou no Judiciário o habitat perfeito: uma linguagem hermética, ausência de voto, irresponsabilidade política e poder crescente. A pandemia apenas forneceu o laboratório ideal para transformar preferências ideológicas em imperativos técnicos.
Mas a tecnocracia togada não triunfou sozinha. Parte da direita brasileira, educada no culto à gestão e na aversão ao embate moral, aderiu voluntariamente à fantasia de que é possível governar sem política, como se o Estado fosse uma empresa e o conflito um defeito de fabricação. Ao abdicar da disputa simbólica — e, por vezes, aplaudir os juristocratas que aniquilaram a política —, entregou o campo cultural e institucional à aliança entre o lulopetismo e a tecnocracia jurídica.
É nesse cenário que a candidatura de Flávio Bolsonaro adquire relevância política real. Não porque aponte para soluções mágicas, mas porque recoloca a política onde ela foi banida. Num país governado por técnicos que se dizem infalíveis, insistir na soberania popular é um ato de insubordinação democrática. A escolha que se impõe é clara: continuar sob a tutela dos juristocratas ou devolver ao povo o direito — sempre incômodo — de decidir por si mesmo.





