A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) divulgou seu relatório anual sobre liberdade de expressão na sexta-feira passada (9), ignorando casos graves de censura no Brasil, em especial as decisões judiciais do Supremo Tribunal Federal (STF) contra a direita. Por outro lado, dedicou espaço para criticar o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) pelo caso do uso de peruca no plenário.
O documento, elaborado pela Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da OEA (RELE), ainda não é aquele relatório previsto sobre o caso da liberdade de expressão no Brasil, que será baseado nas audiências feitas entre 9/2 e 14/2 pela CIDH com diversas autoridades, meios de comunicação e alvos da censura do Judiciário. Ainda assim, o conteúdo dele dá indícios do viés que se pode esperar no documento sobre a visita de fevereiro, que ainda não tem data prevista para sair.
“Seu relatório sobre a visita ainda é esperado e não necessariamente ele teve tempo de incluir em seu relatório anual algo sobre a visita in loco. Mas, se o relatório que virá for similar ao que ele já escreveu no relatório anual, as notícias que teremos são pouco alvissareiras”, comenta Luiz Augusto Módolo, doutor em Direito Internacional pela USP e autor de “A saga de Theodore Roosevelt” (2020).
Documento anual da OEA cita casos de censura do STF sem condenação explícita
O relatório anual, assinado por Pedro Vaca, relator especial para a liberdade de expressão da CIDH, traz um panorama das principais ameaças à liberdade de expressão em toda a América ao longo de 2024. O documento foca em casos de violência contra jornalistas, uso de processos judiciais como forma de intimidação e ações estatais para controle da informação, além de abordar episódios envolvendo plataformas digitais e “desinformação”.
Vários personagens alvos de censura e alguns meios de comunicação, entre eles a Gazeta do Povo, fizeram à OEA um levantamento detalhado dos casos mais graves de perseguição e ataque contra a liberdade de expressão da direita, incluindo decisões do STF que resultaram em bloqueios de perfis, remoção de conteúdos e perseguições judiciais contra jornalistas e influenciadores críticos ao tribunal. Apesar da documentação apresentada, a maioria desses episódios não foi mencionada no relatório oficial.
A OEA chega a mencionar algumas medidas do Judiciário contra plataformas digitais, como o bloqueio da rede social X, mas trata o tema sem condenação explícita às ações, como um tema a ser observado, sempre terceirizando qualquer juízo sobre o que fez o STF – essa mesma isenção não se vê, por exemplo, no caso da peruca de Nikolas ou da batalha judicial entre Patrícia Campos Mello e o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), em que a OEA assume posicionamento claro.
“Em abril, os chamados ‘Arquivos X’ revelaram uma série de e-mails da rede social X e ordens de restrição de conteúdo emitidas pelo Supremo Tribunal Federal dirigidas à empresa. Alguns setores denunciaram esses documentos como evidência de censura no Brasil”, diz o relatório.
O órgão dá sinais sutis de preocupação com a suspensão da rede de Elon Musk, especialmente no que diz respeito à proibição de VPNs e aos impactos sobre jornalistas. Mas essas preocupações são sempre atribuídas a “organizações da sociedade civil”, e nunca formuladas como uma crítica direta da OEA às decisões do STF.
“Duas ações constitucionais apresentadas por terceiros tentaram contestar a ordem de suspensão diante da proibição do uso de VPN. Segundo organizações da sociedade civil, isso teria impactado o exercício de atividades legítimas na rede, como o trabalho jornalístico”, diz o relatório.
Na sequência, a OEA arremata os comentários sobre o caso do X com um aparente aceno positivo às restrições impostas pelo STF, afirmando que “as ameaças reais às instituições democráticas, assim como a proliferação de discursos violentos e da desinformação nas redes sociais, desencadearam reações intensas contra as plataformas na região”. “No ambiente digital, os Estados têm a obrigação não apenas de garantir que todas as pessoas possam exercer plenamente seu direito à liberdade de expressão na internet, mas também de assegurar que as empresas privadas que administram o discurso e a informação online respeitem os direitos humanos em seus produtos e serviços”, diz.
Em casos não relacionados com a direita, OEA manifesta “preocupação”
A OEA também cita brevemente a censura imposta pelo Supremo Tribunal Federal a Filipe Martins, ex-assessor internacional da Presidência no governo Bolsonaro, mas o faz sem qualquer reprovação. Martins não pode usar redes sociais nem dar entrevistas a veículos de comunicação, sob pena de ser novamente preso. O episódio é descrito em tom neutro, como um fato administrativo, sem que a Relatoria manifeste preocupação com o impacto da decisão sobre a liberdade de expressão.
“A Relatoria também registrou a ordem de 22 de agosto de 2024 do Supremo Tribunal Federal que proibiu um ex-assessor de assuntos internacionais da Presidência da República, atualmente investigado por alegada participação em tentativa de golpe de Estado, de conceder uma entrevista ao jornal Folha de S.Paulo”, diz o documento.
Em casos não relacionados com a direita, a OEA é explícita em manifestar “preocupação”. “Este órgão observa com preocupação a detenção, por parte da Polícia de São Paulo, de jovens que protestavam contra o aumento do preço do transporte público. A eles teria sido imputada a suposta prática dos crimes de associação criminosa e tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, o que poderia representar uma distorção do tipo penal com o objetivo de restringir o direito à manifestação”, diz a OEA.
Nenhuma das múltiplas distorções de tipos penais contra a direita, em especial as relacionadas ao que o Supremo chama de “tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito”, foi mencionada pela Relatoria.
OEA mostra viés em relatório anual, diz jurista
Para Luiz Augusto Módolo, há uma inversão de valores nas críticas feitas pelo relatório da OEA contra a atitude de Nikolas.
“O caso do deputado Nikolas Ferreira, que está tendo sua imunidade parlamentar ignorada pelo fato dele ter usado uma peruca loira e criticado os exageros das demandas LGBT, foi completamente invertido. Nikolas é que foi pintado como o agressor, quando em verdade ele e seus eleitores é que estão tendo suas garantias constitucionais atropeladas”, diz. “O fato é que quando Pedro Vaca foi fazer seu relatório, mesmo antes da visita recente, já havia bastante material para trabalhar sobre abusos que grande parte do espectro político brasileiro já vinha sofrendo, especialmente vindo de altas autoridades do país. Mas ele aparentemente colocou antolhos ao fazer seu relatório e optou por priorizar relatos vindos de fontes que compartilham sua visão de mundo”, acrescenta.
Em vários casos relacionados à liberdade de expressão no relatório, a OEA é explícita em seus juízos de valor, mas quase todos eles se referem a jornalistas ou pessoas de esquerda. A OEA dedica grande espaço a casos de profissionais de meios de comunicação esquerdistas condenadas judicialmente ou ofendidas – nestes casos, demonstrando preocupação com a proteção à atividade jornalística.
“A RELE manifesta sua preocupação diante da condenação penal contra uma jornalista no Brasil”, diz, referindo-se à jornalista Schirlei Alves, punida por reportar falas durante o julgamento do caso Mariana Ferrer. Em relação à jornalista Patrícia Campos Mello, a OEA afirma que “saúda decisões que contribuem para garantir o direito à liberdade de expressão” e celebra a decisão judicial que determinou indenização à jornalista por ofensas feitas por Eduardo Bolsonaro “em razão de sua condição de mulher”.
O relatório anual da OEA também dá atenção especial ao assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips na Amazônia. A OEA afirma que “o assassinato de jornalistas representa a forma mais extrema de censura, e que a impunidade favorece a autocensura da imprensa”, cobrando do Estado brasileiro diligência nas investigações e reparação às famílias.
O documento ainda elogia o reconhecimento, por parte do STF, do assédio judicial como uma ameaça à liberdade de expressão, em referência a uma decisão da Corte que passou a permitir que jornalistas processados repetidamente por um mesmo tema possam solicitar a unificação das ações em seu domicílio, com o objetivo de reduzir custos e evitar perseguições.
O relatório também aborda outras iniciativas estatais relacionadas à regulação de conteúdo, mas com juízos de valor menos explícitos. Cita, de forma descritiva, a criação do Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia (Ciedde) pelo TSE como parte dos esforços para conter fake news nas eleições municipais.
“[Pedro] Vaca [relator especial da CIDH] menciona a criação do CIEDD pelo TSE, mas apenas relata sua criação de forma acrítica e esquece completamente de mencionar a situação de Eduardo Tagliaferro, servidor ligado ao órgão, demitido do TSE e que consignou diversas denúncias sobre seu período no TSE. As reportagens na Folha de Glenn Greenwald e um outro jornalista sobre os métodos do TSE não mereceram menção”, observa Luiz Augusto Módolo.
O documento fala ainda sobre a sanção da Lei nº 14.811/2024, que tipifica o bullying e o cyberbullying como crimes, sem emitir avaliação direta sobre seus efeitos. E também menciona, sem fazer juízo de valor, a retirada de circulação de livros jurídicos considerados homofóbicos e misóginos, determinada pelo ministro Flávio Dino, do STF.
“[Vaca] poderia ter sido mais incisivo ao criticar a decisão do STF que determinou a destruição de livros jurídicos com conteúdo considerado inapropriado, bem como a alta multa por danos morais coletivos aplicada ao autor do livro”, diz Módolo.
Crédito Gazeta do Povo