Lucas Mesquita, jornalista de Brasília trabalha para o governo Lula e já registrou encontros com Flávio Dino e Alexandre de Moraes
Por David Agape
Na audiência transmitida ao vivo no Senado nesta terça-feira, 2, o perito Eduardo Tagliaferro, ex-assessor de Alexandre de Moraes, fez revelações que colocam em xeque a legalidade de uma das operações mais controversas do Supremo Tribunal Federal (STF): a busca e apreensão, às vésperas das eleições de 2022, contra empresários acusados de trocar mensagens em grupos de WhatsApp supostamente favoráveis a um golpe de Estado.
A sessão ocorreu na Comissão de Segurança Pública do Senado, convocada pelo senador Magno Malta (PL-ES) e presidida por Flávio Bolsonaro (PL-RJ), no mesmo horário em que o STF julgava o ex-presidente Jair Bolsonaro por abuso de poder político.
Segundo Tagliaferro, o que foi apresentado como ação amparada por investigação técnica e provas consistentes, na verdade teria sido montado a posteriori — depois da operação já realizada. Ele afirma que foi coagido a produzir documentos com datas retroativas, incluindo mapas mentais, relatórios e pareceres que dariam aparência de legalidade à decisão de Moraes, quando na verdade, segundo ele, tudo havia sido feito com base apenas na reportagem do jornalista Guilherme Amado, publicada no Metrópoles.
À nossa reportagem, Tagliaferro afirmou que as mensagens do grupo foram enviadas diretamente para ele pela “Bruxa” da Vaza Toga, que A Investigação já identificou anteriormente como a jornalista Letícia Sallorenzo.
Entretanto, nossa reportagem analisou os registros apresentados por Tagliaferro na audiência, e conseguiu identificar o infiltrado responsável pelo envio das informações a Sallorenzo. Trata-se de Lucas Mesquita, documentarista e jornalista de Brasília, militante de esquerda que já ficou conhecido por infiltrações em grupos de WhatsApp de figuras de direita.
Na reportagem da Vaza Toga 2, revelamos que o ministro Alexandre de Moraes autorizou o acionamento de “parceiros externos” para estruturar as investigações relacionadas aos eventos de 8 de janeiro de 2023. Agora, a vigilância em massa da população ganha novos contornos: arapongas passaram a coletar informações de cidadãos comuns e a repassá-las diretamente ao Judiciário, muitas vezes sem qualquer indício concreto de crime.
Quem é o infiltrado
Lucas Mesquita, 35 anos, é jornalista e documentarista radicado em Brasília. A sua carreira começou nos bastidores do poder, como assessor de imprensa da chapa Dilma-Temer nas eleições de 2010. A experiência lhe deu acesso precoce ao centro das decisões políticas.
Flamenguista convicto, Mesquita se envolveu em uma disputa com a então presidente do clube, Patrícia Amorim, em 2012. Produziu conteúdos satíricos contra a gestão e, após pressões da diretoria, quase foi expulso do quadro associativo. Com o tempo, abandonou a militância esportiva e mergulhou na produção audiovisual. Fundou uma microempresa de produção fotográfica e cinematográfica em Brasília e, junto ao irmão Gabriel Mesquita, passou a dirigir e roteirizar documentários políticos.
Em 2022, dirigiu o curta “Contra Golpe”, que documentou os atos pela “defesa da democracia” realizados na Faculdade de Direito da USP. A produção, que teve apoio do Grupo Prerrogativas, registrou a leitura da “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito”, divulgada como reação à candidatura de Jair Bolsonaro.
No mesmo ano, lançou o documentário “Eles Poderiam Estar Vivos”, também apoiado pelo Prerrogativas. A peça atribuía ao “negacionismo do governo” a responsabilidade por metade das mortes na pandemia. A narrativa baseou-se em depoimentos alinhados ao campo político da esquerda ou críticos de Bolsonaro, como a infectologista Luana Araújo e o epidemiologista Pedro Hallal, professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e coordenador do estudo Epicovid-19, ambos participantes da CPI da Covid.
Foi Hallal quem projetou a ideia de que 400 mil mortes poderiam ter sido evitadas, caso o Brasil tivesse a mesma taxa de mortalidade da média global. A estimativa viralizou nas redes e se tornou instrumento político contra Bolsonaro. O argumento, no entanto, ignorava fatores determinantes como desigualdade, infraestrutura de saúde, subnotificação, política de testagem e dinâmica regional da pandemia. A cifra, embora impactante, se sustentava mais em pressupostos militantes do que em rigor científico.
O modus operandi
Em pelo menos duas ocasiões, Lucas Mesquita se infiltrou em grupos privados de WhatsApp que reuniam empresários, políticos e juristas ligados à direita. O conteúdo extraído por ele serviu tanto como base para decisões judiciais quanto como munição em reportagens de grandes veículos.
Um desses espaços foi o Parlatório, criado pelo jornalista Carlos Marques, diretor editorial das revistas IstoÉ e IstoÉ Dinheiro e ligado ao LIDE, grupo empresarial fundado pelo ex-governador João Doria. O Parlatório reunia cerca de 250 empresários, intelectuais, jornalistas, publicitários e políticos — entre eles o ex-ministro e então candidato ao Senado Sergio Moro. Mesquita permaneceu nesse ambiente por cerca de dois ou três anos, em silêncio, apenas observando.
A ruptura veio em outubro de 2022, quando Mesquita criticou abertamente a reaproximação de Moro com Jair Bolsonaro. Publicou um vídeo e um texto duros — chamando o ex-juiz de “tchutchuca de miliciano” — e acabou expulso, segundo ele por pressão de Moro. Na GloboNews, a jornalista Andréia Sadi apresentou o episódio como se o vazamento tivesse partido de “participantes desconfortáveis”, mas tudo indica que a operação foi cuidadosamente planejada para ter a repercussão midiática.
O mesmo modus operandi foi aplicado ao chamado “grupo dos empresários”, cujas mensagens foram obtidas de forma semelhante e repassadas ao portal Metrópoles. As mensagens do grupo que nossa reportagem teve acesso mostram que Lucas fez de tudo para dissimular sua militância de esquerda, tentando se fazer passar por alguém de centro para ganhar a confiança do grupo.
“Infelizmente vai ser segundo turno entre Lula e Bolsonaro. Mas ainda tenho esperança de alguém conseguir aglutinar as forças de centro e ir pro segundo turno, para aí sim derrotar Lula ou Bolsonaro”, escreveu Lucas no dia 24 de abril de 2022.
Em maio, Guilherme Amado publicou a primeira reportagem com vazamento do grupo dos empresários mirando declarações de Luciano Hang sobre o padre Julio Lancellotti. Na ocasião, os integrantes do grupo tentaram encontrar quem seria o “X9” (delator infiltrado), excluindo alguns integrantes inativos, mas não suspeitaram de Lucas. Por causa da reportagem, Hang foi condenado pela Justiça de São Paulo a pagar danos morais a Lancellotti por ter chamado o religioso de “bandido”. A juíza Eliana Adorno de Toledo Tavares determinou que Hang pagasse R$ 8 mil de indenização.
“Pessoal aqui no grupo temos um X9, um dedo duro. Olha só onde foi parar a nossa conversa aqui no grupo. O membro que teve coragem de passar as mensagens para a imprensa também deveria ter a coragem de se posicionar agora e dizer o porquê fez isso. O que quis deixar bem claro na minha posição foi a militância do Lancellotti em apoiar um líder que defende o comunismo pelo mundo e pela América Latina que são geradores da miséria. Não sou contra a parte social, falei dele, desse caso específico, da militância de esquerda”, escreveu Hang no grupo após o primeiro vazamento.
No dia 17 de agosto, dia da publicação da reportagem do Metrópoles, a equipe de Amado enviou mensagens aos integrantes do grupo solicitando declarações sobre as acusações. Muitos compartilharam no próprio grupo as demandas recebidas, entre eles Lucas, que perguntava o que deveria fazer.
Meses depois, em janeiro de 2024, Lucas foi nomeado para um cargo comissionado como assessor no recém-criado Ministério do Empreendedorismo, da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, comandado por Márcio França.
Nas redes sociais, Lucas mantém uma presença discreta, mas não invisível. Registra encontros com figuras como Lula, Flávio Dino e Alexandre de Moraes. Em comentários e interações, chegou a dialogar com Letícia Sallorenzo, mais conhecida pelo codinome “Bruxa” — a mesma que atuava como colaboradora informal do TSE no monitoramento de opositores.
A operação contra os empresários
Voltando à audiência do Senado. Por videoconferência, Tagliaferro narrou que, em agosto de 2022, recebeu ordens do assessor Airton Vieira, braço-direito de Alexandre de Moraes, para montar documentos que dariam lastro à operação contra os empresários. Disse que havia pressa no gabinete: o plano era executar as buscas numa segunda-feira; elas ocorreram na terça, 23 de agosto.
Na semana anterior, em 17 de agosto, o Metrópoles tinha publicado reportagem com diálogos atribuídos a integrantes do grupo “Empresários & Política”, entre eles Luciano Hang (Havan), Meyer Nigri (Tecnisa) e Afrânio Barreira (Coco Bambu). Entre as diversas mensagens e comentários de cunho político — a peça citou, por exemplo, a frase “Prefiro golpe do que a volta do PT. Um milhão de vezes”, atribuída a um participante. Não havia qualquer fala criminosa de Hang no material publicado, mesmo assim, ele foi alvo de busca e apreensão e teve os perfis bloqueados apenas por participar do grupo.
A operação contra os empresários foi cumprida em cinco estados no dia 23 de agosto de 2022. Foram alvos nomes de peso do empresariado nacional. A Polícia Federal apreendeu celulares, promoveu quebras de sigilo e bloqueou contas nas redes — inclusive as de Hang, que ficaram mais de dois anos fora do ar, com reativação só em setembro de 2024. Em agosto de 2023, cerca de um ano depois, o STF arquivou o inquérito em relação a seis dos oito empresários por “ausência de justa causa”, mantendo Hang e Nigri por mais 60 dias. Até hoje não há denúncia formal apresentada nesse caso.
A operação contra os empresários foi deflagrada apenas dez dias antes do primeiro debate presidencial na Band. A medida atingiu em cheio a base de apoio de Jair Bolsonaro: além de apreensões e quebras de sigilo, empresários tiveram suas redes bloqueadas, como Luciano Hang, um dos principais amplificadores digitais do bolsonarismo. A ausência dessas vozes reduziu a capacidade de mobilização nas redes e serviu como aviso ao setor privado de que manifestações públicas em favor do presidente poderiam gerar retaliações judiciais, produzindo um efeito de intimidação que limitou o engajamento empresarial durante a campanha.
Ao mesmo tempo, a operação foi explorada politicamente. A narrativa do “golpismo empresarial” se consolidou no noticiário e deu munição ao discurso de Lula nos debates, reforçando a ideia de que Bolsonaro e seus aliados representavam uma ameaça à democracia. Com vozes empresariais censuradas e a narrativa adversária amplificada, Bolsonaro entrou no horário eleitoral e nos debates em desvantagem estratégica, tanto em termos de recursos financeiros quanto de alcance digital.
Até então, suspeitava-se que a medida havia sido deflagrada a partir da série do Metrópoles — a própria decisão tornada pública pelo STF menciona as reportagens. No dia 23, porém, a então âncora da CNN Daniela Lima teria “apurado” que a ação teve como fundamento um pedido da PF que apurava a organização e o financiamento de atos antidemocráticos, conhecido como inquérito das milícias digitais.
Entretanto, segundo Tagliaferro, esta informação era falsa: a única base da decisão foi a reportagem do Metrópoles. “O que aconteceu foi que Moraes determinou que seus assessores extraíssem as falas da matéria e as formatassem em um relatório. Só que aquilo era um grupo privado de WhatsApp. Seria criminoso da minha parte atestar a autenticidade daquelas conversas”, afirmou.
A denúncia de Tagliaferro deve abrir espaço para novas apurações, dentro e fora do Congresso. Senadores da oposição já pediram acesso aos arquivos citados e prometem convocar Airton Vieira e autoridades da PF para explicações.
A ação retroativa
A parte mais grave da denúncia veio em seguida. Tagliaferro declarou que, depois da operação já executada, ele foi procurado por Airton Vieira, que não sabia usar computador, para “ajudar a construir uma história”. O objetivo: forjar a existência de uma investigação prévia que justificasse a ação do STF.
Ele contou que recebeu arquivos com “PETs” já marcadas e instruções para produzir mapas mentais ligando os empresários a supostos financiadores de atos antidemocráticos e redigir um relatório com data de dias antes da operação. Tudo isso, afirma ele, para que Moraes pudesse retirar o sigilo do processo e mostrar à imprensa que havia embasamento além da matéria jornalística.
“Assinei como se fosse um relatório do Supremo Tribunal Federal. Mas eu não era servidor nomeado. Fiz porque fui instruído. E está tudo documentado: os arquivos, as datas de criação, os metadados, os hashes. Tudo com perícia técnica”, garantiu.
Durante a audiência, Tagliaferro exibiu capturas de tela, datas de criação de documentos e o próprio mapa mental que, segundo ele, foi usado por Moraes para justificar as medidas. Nele, os empresários apareciam ligados a nomes como “Custer”, “Bezerra” e “Álvaro dos Santos”, todos conectados por setas a um suposto centro de financiamento de atos golpistas.
Segundo o ex-assessor, esse documento foi criado em 28 de agosto de 2022, seis dias após a operação — mas foi incluído no processo como se tivesse sido feito em 22 de agosto. Outro relatório foi juntado aos autos em 29 de agosto, embora também tenha sido confeccionado depois da operação, não antes, como o STF teria afirmado.
“Essa fraude é gravíssima. Se isso foi feito nesse processo, o que não pode ter sido feito em outros, todos físicos, todos guardados a sete chaves no gabinete do ministro?”, questionou.
Quem é Guilherme Amado
Guilherme Amado é um jornalista investigativo, ex-diretor e ex-vice-presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e integrante do conselho da Global Investigative Journalism Network (GIJN); hoje escreve no site independente PlatôBR e mantém projetos próprios. Em novembro de 2024, foi demitido do Metrópoles por quebra de exclusividade, após atuar em parceria paralela com o Instituto Conhecimento Liberta (ICL) sem autorização do veículo; relatos internos apontam que transmissões do ICL teriam sido feitas no estúdio do Metrópoles sem autorização.
O nome de Amado também aparece em controvérsia envolvendo Filipe Martins. Em outubro de 2023, o jornalista assinou reportagem que afirmava haver registro de entrada de Martins nos Estados Unidos e que ele teria “evaporado”. Mesmo tendo comprovado que não viajou, por causa desta reportagem, Martins foi preso em fevereiro de 2024 e permaneceu cerca de seis meses detido. Posteriormente, descobriu-se que o registro usado como prova era inválido e, ainda, foi supostamente adulterado. Fato que ainda hoje está sob apuração.
Outro lado
Nossa reportagem entrou em contato com Lucas Mesquita e Letícia Sallorenzo, mas até o momento não obtivemos retorno. O espaço segue aberto para esclarecimentos.