Relatório da PF sobre suposto golpe indica para ilegalidades e instabilidades no processo de investigação, alertam especialistas.
Um novo relatório apresentado pela Polícia Federal (PF) na semana passada ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), sobre os supostos atos golpistas traz novas evidências contra os réus, mesmo depois deles terem sido interrogados e suas defesas ouvidas pela Corte. Sua apresentação neste momento aponta para ilegalidades no processo e pode gerar instabilidade e questionamentos formais do julgamento como um todo. A avaliação é de juristas ouvidos pela Gazeta do Povo.
No documento de 135 páginas entregue ao STF na última quarta-feira (18) constam novas provas obtidas a partir da análise do celular de um ex-assessor do general Walter Braga Netto.
O equipamento, documentos e outros aparelhos eletrônicos foram apreendidos em dezembro do ano passado quando o general foi preso sob acusação de obstrução da Justiça. Seu assessor não está entre os investigados nem foi indiciado. No documento, a PF tira conclusões a partir da análise de mensagens eletrônicas.
“As trocas de mensagens confirmaram a atuação do general Braga Netto como uma figura central para a implementação das estratégias visando desacreditar o sistema eleitoral e o pleito de 2022. Elemento fundamental, dentro do escopo traçado pela organização criminosa, para estimular seus seguidores a ‘resistirem’ na frente de quartéis e instalações das Forças Armadas, no intuito de criar o ambiente propício para o golpe de Estado”, diz trecho do relatório.
A defesa do general disse que “mais uma vez, a Polícia Federal tenta induzir a erro a Procuradoria-Geral da República e o Supremo Tribunal Federal, com interpretações que não condizem com as provas” e reafirmou que o general sempre respeitou as instituições democráticas e o processo eleitoral.
A PF não costuma comentar investigações em curso. Apesar de o relatório ter sido enviado ao STF, ele ainda precisa ser remetido para análise da Procuradoria-Geral da República (PGR).
STF recebe novos documentos sem obedecer ritos processuais, alerta advogado
O advogado e comentarista político Luiz Augusto Módolo avalia que o STF não tem adotado corretamente o procedimento previsto para o recebimento e uso de provas, principalmente as consideradas emprestadas entre um inquérito e outro.
Segundo ele, como vários inquéritos correlacionados ao suposto golpe de Estado tramitam sob a relatoria do mesmo ministro, Alexandre de Moraes, e na mesma Corte, o tribunal aparentemente considera desnecessário seguir formalmente o procedimento, assim como não tem observado com rigor o momento processual adequado para a apresentação das provas.
Módolo destaca que, nesse contexto, a Polícia Federal não poderia, por exemplo, solicitar agora que essas novas provas sejam utilizadas diretamente no inquérito do golpe. Isso porque a fase de instrução já foi iniciada e todas as provas que serão utilizadas nesse processo deveriam estar formalmente integradas aos autos, anterior ao momento atual.
Para Módolo, o relatório da PF sequer deveria servir para o inquérito do golpe. Ele diz que seria como se a acusação, a Procuradoria-Geral da República, tivesse todo o tempo necessário para “produzir as provas”, até a véspera da sentença ou mesmo até a fase recursal, enquanto a defesa tem os poucos dias para lidar com as evidências.
O jurista avalia que o processo não é mera formalidade e se não há respeito às regras, não poderia sequer haver o processo. “Já saímos das quatro linhas [da Constituição] tão faladas por Bolsonaro”.
Para Módolo, a postura da Corte ao aceitar novos relatórios a qualquer momento indica que se aguarda, inclusive, a produção de supostas “provas futuras” sobre o golpe, o que torna extremamente difícil o trabalho das defesas.
“As provas podem chegar ao processo a qualquer momento, mas quando foi solicitada a anulação da delação do ex-ajudante de ordens Mauro Cid, ela foi negada porque não caberia àquele momento do processo”, reforça.
O ministro Alexandre de Moraes negou neste mês de junho, mais uma vez, o pedido da defesa de Bolsonaro para anular a delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, argumentando que o pedido era “impertinente” e inadequado ao atual momento processual.
A defesa alegava que áudios e mensagens atribuídas a Cid, divulgados nas redes sociais, indicariam que ele teria feito a delação sob pressão e sem voluntariedade, o que, segundo os advogados, comprometeria sua credibilidade e tornaria ilícitas as provas decorrentes, mas Moraes considerou que essa discussão não cabe na fase atual do processo.
Novo documento é entregue pela PF quatro meses após denúncia da PGR
Especialistas avaliam ainda que há questionamentos sobre a apresentação do relatório quatro meses após a denúncia feita pela PGR, com mais de 30 réus na ação penal, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro.
Em maio, antes da entrega formal deste novo relatório, o STF começou a ouvir depoimentos de testemunhas e denunciados. “Em fevereiro, quando a PGR apresentou denúncia contra os agora réus, já sabia que havia mais provas a serem analisadas, porque as apreensões foram em dezembro de 2024. Então, por que não aguardar para se manifestar no momento que tivessem todos os documentos em mãos?”, questiona o advogado especialista em Direito Penal Márcio Nunes, da Nunes e Nunes Consultoria Empresarial.
Em um primeiro momento, a direção-geral da PF disse que haveria um relatório complementar ao apresentado em 2024, em seguida voltou atrás dizendo que esse novo documento, entregue na semana passada, seria apenas uma “análise complementar”. Ocorre que ele elenca uma série de ações que implicam ainda mais Braga Netto e outros citados.
A própria PF já havia reconhecido informalmente que, se esse envio ocorresse posteriormente à apresentação da denúncia, poderia gerar questionamentos das defesas que têm alegado cerceamento do direito constitucional de ter acesso integral às provas, condição que o STF nega. Analistas avaliam que implicados no inquérito podem inclusive pedir a nulidade integral ou de parte do processo. “O problema é a quem recorrer, já que o inquérito corre no STF, na Corte máxima”, completa o advogado.
No Supremo Tribunal Federal (STF), há interesse e pressão, por parte dos ministros mais politizados, por uma condenação ainda neste ano e até mesmo pela prisão dos condenados para cumprir a pena, que pode alcançar 30 anos de reclusão.
Nos bastidores, a iminente aplicação de sanções a Moraes e outros ministros por parte dos Estados Unidos – em razão de decisões que promoveram censura nas redes sociais – levou parte da Corte a dobrar a aposta, acelerando o processo e endurecendo a persecução penal de Bolsonaro.
Direito de defesa fica comprometido em inquérito do golpe
O constitucionalista André Marsiglia, fundador da L+ Speech/Press, alerta que a apresentação de novos elementos após a denúncia compromete o direito de defesa. “Parece estar em curso uma correria condenatória, não um processo judicial regular”, afirma.
Ele reforça que é obrigatória a abertura de novo prazo para manifestação da defesa sempre que surgirem documentos extras. “Do contrário, é absurdo e nulo tudo o que vem depois. As partes têm de ter acesso a tudo”, adverte.
Para Marsiglia, não há como uma defesa atuar sem acesso pleno aos elementos produzidos na investigação. “É preciso que o STF encerre os inquéritos, as diligências e os transforme em ações penais de fato, com os acusados tendo acesso à integralidade dos autos, para que se defendam de fatos certos e não de fatos hipotéticos que vão sendo acrescentados a cada novo acontecimento”, reforça.
Luiz Augusto Módolo também alerta para um grave desequilíbrio. Segundo ele, a paridade de armas é quebrada quando o juiz ou a acusação conhece a integralidade dos autos e as defesas não.
Esse processo violaria o Pacto de São José da Costa Rica, ao qual o Brasil é signatário e garante ao acusado tempo e meios adequados para preparar sua defesa. “O general Braga Netto já foi ouvido e o relatório sobre essas provas foi apresentado pela PF ao STF após esse depoimento. Esse relatório sequer deveria ser admitido ao processo”, afirma.
Defesas devem ter acesso integral e se manifestar antes de qualquer decisão formal
O advogado constitucionalista Alessandro Chioratino da Chiarottino & Nicoletti Advogados alerta que as defesas têm direito de acesso integral e de se manifestar sobre o documento antes de qualquer decisão ser tomada com base nessas provas. “Se não houver esse acesso, o processo pode ser anulado parcialmente, a depender da extensão do prejuízo à defesa”.
O especialista lembra que, em princípio, até é possível apresentar novas provas no decorrer de processos penais, mas com ressalvas. Ele explica que a juntada destes documentos é possível mesmo após a denúncia, inclusive durante a instrução, porém, é preciso que ela seja relevante e pertinente aos fatos. Também é necessário que a parte contrária – no caso, a defesa – tenha acesso e oportunidade de se manifestar para o chamado princípio do contraditório.
Isso foi estabelecido para que não se violem garantias do devido processo legal como a não surpresa e o direito de se preparar para enfrentar a prova.
Se surgir uma nova prova que mude bastante o rumo das acusações, os advogados de defesa podem pedir que mais provas sejam colhidas, que testemunhas sejam ouvidas novamente, o que poderia, inclusive, mudar o direcionamento do inquérito.
Apesar de pouco provável, esses fatos também poderiam alterar o conteúdo da denúncia feita pela PGR há quatro meses. “No entanto, a falta de acesso dos advogados aos autos é o que há de mais grave nisso tudo”, reforça Chioratino.
Saiba quais são novas as evidências apresentadas em relatório da PF
O relatório de 135 páginas enviado pela PF ao STF na última semana apresenta como provas mensagens de texto e áudios extraídos do celular de um assessor de Braga Netto. O documento cita mensagens do grupo de WhatsApp “Eleições 2022@” indicando que Braga Netto era membro e que as mensagens demonstrariam o envolvimento dele no planejamento e execução de ações contra o regime democrático, incluindo a elaboração e revisão de um documento nomeado como “bolsonaro min defesa 06.11-semifinal.docx” – a suposta minuta do golpe.
As mensagens também indicariam, segundo a PF, sua atuação central na implementação de estratégias para desacreditar o sistema eleitoral e o pleito de 2022, estimulando a permanência de manifestantes em frente a quartéis para criar um ambiente propício a um golpe de Estado.
A PF elenca o documento “bolsonaro min defesa 06.11-semifinal.docx” que teria sido enviado pelo ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, o coronel Mauro Cid a Braga Netto em 6 de novembro de 2022. Segundo o relatório, ele foi aparentemente preparado e revisado por membros do grupo “Eleições 2022@”, incluindo o general.
O documento contém, de acordo com descrição da Polícia Federal, informações sobre supostas fraudes nas urnas eletrônicas, destinadas a influenciar o relatório técnico das Forças Armadas sobre a fiscalização do sistema eletrônico de votação.
A PF também traz detalhes sobre mensagens trocadas entre Braga Netto e Mauro Cid sobre eventos anteriores, ainda em 2021, incluindo a Operação Formosa, um exercício militar conjunto realizado anualmente no Campo de Instrução de Formosa (GO), que envolve simulações de guerra, disparos de artilharia, tanques, blindados e mísseis da Marinha, do Exército e, eventualmente, da Aeronáutica.
Essa operação ganhou repercussão no governo Bolsonaro em 2021, quando ocorreu no mesmo dia de uma votação importante na Câmara dos Deputados sobre o voto impresso. Para a PF, isso demonstraria o intento supostamente golpista do grupo, com o uso das Forças Armadas. A Marinha explicou posteriormente que a data do exercício já estava marcada muito antes da votação e não foi possível alterar a logística do deslocamento dos blindados na última hora.
Em mensagens de 10 de setembro de 2021, após uma publicação chamada de “Declaração à Nação” por Bolsonaro, Braga Netto sugere a possibilidade de “virar a mesa” indicando o que a PF considera ser um plano de ruptura institucional para o suposto golpe de Estado. Braga Netto nega todas as acusações e diz que jamais participou ou organizou qualquer ação golpista.
O relatório indica ainda que um assessor de Braga Netto teria tentado acesso ao conteúdo do acordo de colaboração premiada de Mauro Cid, o que não era permitido naquela fase do processo. A partir disso, a PF sugere a existência de uma possível rede de acesso a informações privilegiadas envolvendo o general.
O relatório destaca ainda que podem existir outros elementos relevantes para a investigação, mas caberá à Procuradoria-Geral da República decidir se as apresenta formalmente ou não à denúncia no inquérito. Apesar de mais implicações a Braga Netto e a outros investigados, o relatório não pede o indiciamento de outros nomes, além dos já apresentados no fim de 2024.
Crédito Gazeta do Povo