A um mês da cúpula dos Brics, corte relembra ordem de prisão contra presidente russo por crimes na Ucrânia
O Tribunal Penal Internacional disse ao Estado que os Estados Partes do Estatuto de Roma “têm a obrigação de cooperar com a corte, incluindo o cumprimento de ordens de prisão”. A declaração diz respeito à obrigação do Brasil de prender o presidente da Rússia, Vladimir Putin, caso ele venha ao Rio de Janeiro nos dias 6 e 7 de julho, para a cúpula dos Brics. O convite foi enviado, mas ainda não houve resposta do Kremlin até sexta-feira, 6.
No passado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva já disse que “Putin pode ir tranquilamente para o Brasil”, mesmo havendo ordem internacional de prisão contra ele, e que, enquanto for presidente brasileiro, “não há por que ele (Putin) ser preso”. A declaração de Lula foi dada em 9 de setembro de 2023, durante a cúpula dos Brics em Nova Déli, na Índia. Desde então, Lula convidou Putin para vir ao Brasil duas vezes: no encontro do G20, em novembro de 2024, e, agora na cúpula dos Brics, ambos no Rio.
Perguntado pelo Estado sobre se o Brasil é obrigado a prender Putin caso ele venha ao país, o TPI respondeu por meio de nota que “o Tribunal depende dos Estados para executar suas decisões” e que a cooperação “não é apenas uma obrigação legal para com o Tribunal, nos termos do Estatuto de Roma, mas também uma responsabilidade para com os outros Estados Partes”, que podem analisar a negativa brasileira e chegar a entregar o caso para o Conselho de Segurança das Nações Unidas.
O TPI expediu um mandado de prisão contra Putin em 17 de março de 2023. Ele é acusado de remover à força parte da população civil, particularmente crianças ucranianas, de territórios ocupados militarmente pela Rússia. A ação constitui um crime de guerra, sob a alçada do TPI.
A Rússia não reconhece e não sujeita seus cidadãos à jurisdição da corte. Entretanto, os crimes atribuídos a Putin foram cometidos na Ucrânia, país que reconhece o TPI desde 2013. O Estatuto de Roma, documento que embasa a existência da corte, determina que crimes cometidos dentro do território de Estados que se sujeitam ao TPI, como no caso da Ucrânia, são passíveis de julgamento, ainda que tenham sido cometidos por cidadãos de Estados que não reconhecem sua jurisdição, como é o caso da Rússia.
A captura depende da colaboração de todos os demais Estados-partes, como expresso no artigo 86 do Estatuto de Roma, mas diplomatas brasileiros disseram de forma reservada ao Estado que o Brasil considera que a Convenção de Viena dá imunidade a chefes de Estado, e que um país não é obrigado a se sujeitar às normas de um documento internacional ao qual não tenha aderido – como é o caso da Rússia em relação ao Estatuto de Roma.
Especialistas em direito internacional dizem, no entanto, que esse é um debate já superado. “Se um acusado ou condenado diante o Tribunal Penal Internacional estiver sob jurisdição do Brasil, o país está obrigado, por sua própria Constituição Federal e como Estado-membro do TPI, a entregar essa pessoa para julgamento, mesmo sendo o acusado presidente de um país que não tenha ratificado o Estatuto de Roma”, disse Tarciso Dal Maso Jardim, jurista que fez parte do grupo do Ministério da Justiça que elaborou o PL 301/2007, que internaliza no direito brasileiro esses compromissos internacionais.
Percepção semelhante tem o jurista Vladimir Aras, procurador regional da República em Brasília e professor de direito internacional. Ele diz que “o costume internacional protege apenas os chefes de Estado, os chefes de governo e os chanceleres – a chamada troika –, conferindo a eles imunidade diante de tribunais estrangeiros, de outros países. Contudo, essa imunidade não alcança o TPI, como está expressamente previsto no texto do tratado”.
Em 2024, a Mongólia adotou postura semelhante à que o Brasil ensaia agora, e argumentou direito à imunidade quando recebeu Putin em visita oficial, num momento em que já havia uma ordem de prisão expedida pelo TPI contra ele. À época, a corte reagiu emitindo nota na qual afirmou que “a imunidade pessoal, incluindo a de chefes de Estado, não é oponível perante o TPI” e que os Estados “têm o dever de prender e entregar indivíduos sujeitos a mandados do TPI, independentemente de sua posição oficial ou nacionalidade”.
Mais recentemente, a Hungria, governada pelo primeiro-ministro Viktor Orbán, da direita radical, assumiu posição semelhante à de Lula, ao convidar o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, para visitar o país europeu. Assim como no caso de Putin, o TPI também emitiu ordem de prisão contra Netanyahu, em novembro de 2024. Israel não reconhece o TPI, mas a Hungria é Estado-parte, e, como tal, teria obrigação de entregá-lo. Orbán, no entanto, anunciou que retiraria seu país do tratado – decisão que foi ratificada pelo parlamento húngaro em seguida.
Lula não foi tão longe, mas sua posição colabora para erodir o sistema internacional de responsabilização a criminosos de guerra. Em setembro de 2023, o presidente brasileiro chegou a dizer que o TPI só é reconhecido por países “bagrinhos” – referindo-se aos 125 países signatários do Estatuto de Roma. Entretanto, entre os membros, estão França, Alemanha, Itália e Reino Unido, por exemplo, além de todos os países da América do Sul. O presidente brasileiro fez pouco caso da corte, dizendo que “nem sabia da existência dela”.
A nota do TPI enviada ao Estado diz que “quando os Estados têm questões sobre sua cooperação com o Tribunal, podem fazer consultas de forma direta e oportuna. No entanto, não cabe aos Estados determinar unilateralmente a solidez das decisões jurídicas do Tribunal”.
A Constituição Federal diz que “o Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional”, o que inclui não apenas sujeitar seus cidadãos à corte como colaborar na detenção de pessoas contras as quais o TPI tenha expedido mandado de prisão. O não cumprimento das obrigações pode ser, portanto, uma violação da Constituição por parte do presidente, mas não há sinais no Congresso de parlamentares preocupados com a questão.
Deputados e senadores já levam 18 anos para aprovar o PL301/2007, que detalha no direito brasileiro todas as obrigações internacionais assumidas pelo país nesse âmbito. O projeto passou por todas as comissões e aguarda votação em plenário, mas, há dez anos, não tem nenhuma movimentação. Questionado sobre essa imobilidade, o senador Efraim Filho (União -PB) disse que a “complexa agenda legislativa, somada ao histórico de paz do Brasil nas relações internacionais, naturalmente influencia o ritmo e a prioridade de outras discussões”, que deixam o PL em segundo plano desde 2007.
Crédito Estadão