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Um inocente no cárcere

Foto - Reprodução/Redes

Mesmo com provas robustas de que Filipe Martins não viajou a Orlando com Bolsonaro.

Em 8 de fevereiro deste ano, a Polícia Federal (PF) bateu às 6 da manhã na porta da casa da mulher de Filipe Martins, em Ponta Grossa (PR), para levar para a cadeia o ex-assessor para Assuntos Internacionais da Presidência. O “crime”: ter viajado a Orlando, nos Estados Unidos (EUA), em 30 de dezembro de 2022, com uma comitiva liderada pelo então presidente Jair Bolsonaro. O ato seria uma das etapas da tentativa de “ruptura institucional” que Bolsonaro queria provocar, depois da vitória de Lula, de acordo com a delação do tenente-coronel Mauro Cid. Segundo a PF, Martins é integrante do “núcleo jurídico” de Bolsonaro e auxiliaria o ex-presidente com “minutas de decreto” para determinar estado de sítio e mudar o resultado das eleições.

As acusações absurdas se somam às ilegalidades que ocorreram na prisão de Martins logo no primeiro dia. Isso porque não há denúncia e inquérito formais contra o ex-assessor. Além disso, a audiência de custódia aconteceu quase 48 horas depois da prisão, quando o prazo legal para essa etapa, segundo o ordenamento jurídico, é de até 24 horas. E, mesmo que tivesse viajado aos EUA, Martins não estava impedido de ir a nenhum lugar. “Filipe Martins é livre para ir, vir e permanecer em qualquer lugar [como, de fato, permaneceu], garante a Constituição aos cidadãos brasileiros”, constatou a defesa em um recurso à Justiça.

Abuso de autoridade

O arbítrio continuou ocorrendo, embora Oeste tenha revelado uma semana depois da prisão que Martins não embarcou para os Estados Unidos na data que consta no mandado de prisão, tampouco viajou àquele país na ocasião. Bilhetes de passagens aéreas da Latam Airlines mostraram que o ex-assessor foi a Curitiba (PR) no dia seguinte à ida de Bolsonaro para o exterior. Martins tinha também tickets de bagagens e fotos tiradas na residência da mulher dele, no interior do Estado. Mesmo com essas primeiras evidências apresentadas em um processo, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), manteve Martins preso e, ao rejeitar o pedido da defesa, classificou a própria decisão como “bem razoável”.

Passagem aérea que mostra a ida de Martins de Brasília para Curitiba em 31 de dezembro de 2022 | Foto: Reprodução

Nesse ínterim, o magistrado transferiu Martins da carceragem da Superintendência da PF em Curitiba para uma cela no Complexo Médico Penal, em Pinhais (PR), que ficou conhecido como “presídio da Lava Jato”. Os advogados e familiares não receberam informações a respeito dessa mudança antes que ela ocorresse. Na nova prisão, o ex-assessor da Presidência passou 72 horas isolado em uma “ala de triagem”. Insalubre, o espaço é claustrofóbico e sem luz. Quem é encaminhado a esse setor não tem direito a visitas de parentes ou amigos, tampouco a receber quaisquer objetos.

“Como levam um investigado sem prova de crime e sem flagrante para um local de criminosos condenados, sem nem informar à defesa para que possa saber onde seu cliente está?”, interpelou à época o advogado Ricardo Scheiffer, que cuida do caso de Martins ao lado do ex-desembargador Sebastião Coelho, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e de Territórios. Martins só mudou de cela porque funcionários do local avisaram a defesa, que acionou o Deppen. O que parecia um alívio tornou-se mais um capítulo do pesadelo, pois o ex-assessor teve de ficar com presos comuns, mesmo tendo tido status de ministro de Estado, por cuidar de assuntos internacionais do nosso país.

Como as primeiras provas não foram suficientes para Moraes, a defesa juntou uma série de outras evidências solicitadas pelo juiz do STF, como uma declaração do porteiro do prédio do sogro de Martins, extratos de cartão de crédito e registros de ligações feitas pelo celular. Os advogados também obtiveram comprovantes da Uber, os quais mostraram que Martins estava no Brasil entre 30 e 31 de dezembro de 2022. Portanto, não seria possível o ex-assessor ter viajado com a comitiva de Bolsonaro. De acordo com as novas provas levadas ao STF, Martins compareceu a uma hamburgueria no centro de Brasília, em 30 de dezembro. No dia seguinte, dirigiu-se ao aeroporto da capital federal para viajar a Curitiba. Ao chegar àquela cidade, também usou o serviço de motoristas por aplicativo para se locomover em endereços da capital paranaense.

Comprovante da Uber confirma que Filipe Martins esteve em Brasília, em vez de ter viajado aos EUA | Foto: Reprodução
Comprovante da Uber confirma que Filipe Martins esteve em Brasília, em vez de ter viajado aos EUA | Foto: Reprodução
Comprovante da TIM mostra que Martins usou o celular no Estado do Paraná na data da suposta viagem a Orlando | Foto: Reprodução

Com novos elementos, os advogados voltaram a acionar Moraes, e a resposta foi a mesma ao rejeitar o pedido: solicitação de mais provas. Enquanto a defesa se preparava mais uma vez para tentar garantir os direitos básicos do seu cliente, Moraes acionou o governo dos EUA, de ofício, em 1º de abril, via Itamaraty. Os norte-americanos, porém, informaram que Moraes teria de seguir os trâmites legais, através do Ministério da Justiça. Por isso, em 28 de maio, a pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR), o ministro Ricardo Lewandowski recebeu uma intimação do Supremo para solicitar dados às autoridades estrangeiras.

Nesta quarta-feira, 12, antes mesmo de o requerimento de Moraes ser apreciado, o Departamento de Segurança Interna dos EUA pôs um ponto final na questão envolvendo a viagem ao informar que a ida mais recente de Martins àquele país ocorreu em 18 de setembro de 2022, com destino a Nova York, onde cumpriu compromissos na Organização das Nações Unidas. Portanto, é impossível que o ex-assessor da Presidência tenha acompanhado Bolsonaro em 30 de dezembro como parte do suposto golpe.

Documento do governo dos EUA afirma que Filipe Martins não viajou a Orlando na data dita por Moraes | Foto: Reprodução

Processo kafkiano

O advogado Ricardo Scheiffer resumiu o processo kafkiano de Martins como “uma grave inversão do ônus da prova”, cujo resultado é uma prisão prolongada e injusta que já dura quatro meses. “A acusação, até o momento, não conseguiu apresentar provas concretas e válidas que justifiquem a detenção de nosso cliente”, observou Scheiffer. “Já Filipe, mesmo que não possuísse nenhuma restrição de viajar à época dos fatos, já forneceu documentos contundentes que comprovam o contrário do afirmado.” De acordo com Scheiffer, a defesa já apresentou dez pedidos de soltura, dos quais Moraes rejeitou apenas dois. As ações restantes tiveram seguimento, mas apenas no sentido de obter mais provas sobre a presença de Martins em Orlando.

O caso kafkiano de Martins se soma ao de outros presos políticos que estão em situação semelhante, entre eles os envolvidos na manifestação do 8 de janeiro, Daniel Silveira, Silvinei Vasques e Roberto Jefferson

Vera Chemim, advogada constitucionalista e mestre em Direito Público pela FGV, acrescenta que a prisão preventiva de Martins é baseada exclusivamente no acordo de colaboração premiada de Mauro Cid. Pela ausência de provas da colaboração do militar, não seria permitida a aplicação da medida cautelar. “Não restam dúvidas sobre a ilegalidade da aplicação da prisão cautelar, sobretudo porque Martins já apresentou exaustivamente provas de sua inocência, e o ônus da prova cabe, do ponto de vista legal, ao órgão acusador, e não ao acusado”, constatou Vera. Além de também ver abuso de autoridade ao citar o artigo 9º do parágrafo 1º da Lei nº 13.869/2019, a jurista observou que uma prisão ilegal como a de Martins pode configurar uma conduta equiparada ao crime de tortura, previsto na Lei nº 9.455/1997.

Com a 11ª ação, a defesa espera que o ex-assessor da Presidência possa, enfim, ser libertado e voltar a ter a vida que levava antes de ser detido pela PF. O caso kafkiano de Martins se soma ao de outros presos políticos que estão em situação semelhante, entre eles os envolvidos na manifestação do 8 de janeiro, Daniel Silveira, Silvinei Vasques e Roberto Jefferson, todos sob a toga de Moraes. Em companhia desse grupo de inocentes enjaulados pelo ministro, Martins aguarda agonizando no cárcere, há mais de 120 dias, a incerta chegada da justiça.

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