Por David Agape
Análise exclusiva revela inconsistências no relatório da PF e as fragilidades das acusações contra o IVL
Prosseguimos com nossa análise sobre o Relatório do Golpe, documento elaborado pela Polícia Federal (PF) e divulgado no final de novembro. Até agora, mostramos como as acusações de que os “Kids Pretos” planejavam assassinar ou sequestrar o ministro Alexandre de Moraes carecem de provas concretas e se baseiam em conjecturas frágeis. Revelamos também como a tese de “firehosing”, amplamente divulgada pela “Bruxa da Vaza Toga”, Letícia Sallorenzo, foi utilizada para embasar o relatório e acusar Jair Bolsonaro de conspirar desde 2019 para um golpe de Estado em caso de derrota na tentativa de reeleição. Essa ação da PF, como demonstramos, tenta justificar a criação do Inquérito das Fake News, que marcou o início da atual juristocracia brasileira, com o Supremo Tribunal Federal centralizando o poder e adotando medidas que incluem ilegalidades e violações de direitos constitucionais.
Como parte dessa narrativa de que Bolsonaro conspirava para se manter no poder desde o início de seu mandato, a PF cita a defesa do voto impresso como peça fundamental. Mostramos, porém, que essa acusação não corresponde à realidade: o voto impresso é uma demanda antiga da sociedade e da classe política, defendida por Bolsonaro há anos, muito antes das eleições de 2018.
O comprovante impresso do voto foi concebido juntamente com a introdução da urna eletrônica, em 1995. Na época, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) determinou que cada voto registrado pela urna fosse acompanhado de um comprovante impresso, depositado automaticamente em um repositório inviolável. Esse mecanismo tinha como objetivo principal viabilizar a recontagem de votos, caso fosse necessário. Em 1996, ao eleitor não foi possível conferir o voto impresso, mas 32 milhões de eleitores votaram em 57 cidades e a urna eletrônica imprimiu todos os votos.
O comprovante impresso do voto, como instrumento de auditoria, foi aprovado pelo Congresso em 2001, 2009 e duas vezes em 2015, quando o Congresso derrubou o veto da Presidente Dilma. O tema ganhou novos contornos após a rejeição enfática e truculenta do TSE, criando um ambiente de polarização e desconfiança. Esse cenário fez com que muitos políticos e especialistas, que antes apoiavam a causa, mudassem de posicionamento ou simplesmente parassem de debater o tema, temendo represálias.
Embora o TSE afirme que a “participação da sociedade” é uma das soluções para ampliar o conhecimento sobre o sistema eletrônico de votação e “aperfeiçoar continuamente as soluções de segurança”, a postura agressiva da Corte tem gerado um clima de intimidação. O temor de questionar publicamente as urnas eletrônicas no Brasil tem fundamento. Pesquisadores e técnicos que apresentaram estudos ou propostas de melhorias no sistema eleitoral acabaram incluídos em investigações, muitas vezes sob acusações infundadas.
Um desses casos é o do engenheiro Carlos Rocha que liderou a equipe técnica do Instituto Voto Legal (IVL), contratado pelo Partido Liberal (PL) para a fiscalização das eleições. A auditoria independente do funcionamento das urnas eletrônicas, através da análise dos arquivos Log de Urna, foi incluída no projeto, após o segundo turno das eleições de 2022.
Embora os pesquisadores do IVL tenham identificado diversas desconformidades como travamentos nas urnas, repetição de códigos inválidos e exposição indevida de dados, logo uma contra-análise foi realizada por pesquisadores universitários e usada como base pelo TSE para descartar a auditoria. Na sequência, tanto o PL quanto o IVL foram incluídos no Inquérito 4874, conhecido como Inquérito das Milícias Digitais. Esse modus operandi é semelhante ao adotado no caso da denúncia conhecida como “Radiolão”.
O Radiolão envolveu uma auditoria contratada pelo PL para verificar a distribuição de inserções em rádios durante o segundo turno da eleição de 2022, que apontava um desequilíbrio em favor do PT nas emissoras do Norte e Nordeste. A análise independente de A Investigação confirmou a discrepância de 53 minutos e 30 segundos a mais de tempo para Lula, mas, mesmo assim, Alexandre de Moraes descartou a denúncia com base em um estudo de um professor universitário que usou como referência o perfil apócrifo no Twitter “Desmentindo o Bozo”. Além disso, também incluiu Bolsonaro no Inquérito das Milícias Digitais, alegando que a denúncia teria o propósito de tumultuar o pleito.
Esses casos demonstram um padrão: ao invés de aprofundar a apuração sobre as desconformidades técnicas, as ações se voltam contra os denunciantes. Aparentemente, qualquer análise técnica só é aceita se corroborar as teses do sistema institucional vigente.
A PF acusa o IVL de produzir um relatório fraudulento que teria sido utilizado pelo PL para questionar o resultado das eleições presidenciais. O documento, peça central na investigação sobre a tentativa de golpe, sustenta que o material foi elaborado de maneira dolosa, com ciência das inconsistências, e utilizado para justificar ações golpistas. A PF vai além: sugere que o IVL e seus técnicos, especialmente o estatístico Éder Balbino, teriam colaborado para a disseminação internacional de alegações falsas, com destaque para a live “Brazil Was Stolen”, apresentada pelo influenciador argentino Fernando Cerimedo.
Contudo, entrevistamos com exclusividade Carlos Rocha, a primeira concedida desde o início do inquérito, e revisamos detalhadamente as provas apresentadas no relatório da Polícia Federal. O que encontramos derruba as principais alegações e expõe as fragilidades no caso construído pela Polícia Federal.
Quem é Carlos Rocha?
Carlos Rocha, presidente do Instituto Voto Legal, tem uma trajetória que desafia qualquer narrativa sobre inexperiência ou irresponsabilidade técnica. Engenheiro eletrônico formado em 1977, pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), uma das mais respeitadas instituições de ensino superior do Brasil, Rocha possui um histórico de contribuições técnicas para a automação das urnas eletrônicas que remonta aos anos 1990, quando o sistema começava a ser implementado no país.
Entre 1995 e 1998, Rocha liderou o desenvolvimento e a fabricação das primeiras urnas eletrônicas fornecidas ao TSE. Durante esse período, ele solicitou duas patentes de invenção ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), sendo uma delas referente à urna plástica descartável, que recebeu o registro. O tema tornou-se objeto de uma disputa judicial entre Rocha e a União, em que o pleito da União foi negado em primeira instância e, posteriormente, o governo desistiu de prosseguir com a ação em segunda instância.
Em 2016, a convite do então presidente do TSE, ministro Gilmar Mendes, Rocha participou de reuniões com a Corte apresentando estratégias para adaptação das urnas ao comprovante impresso do voto, conforme exigido por lei na época. Sua atuação demonstrava preocupação com a auditabilidade do sistema, buscando soluções técnicas viáveis para ampliar a transparência das eleições. A proposta apresentada por Rocha permitiu ao TSE contratar um instituto de pesquisa e desenvolvimento, credenciado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), que deu origem ao novo modelo de urna eletrônica com comprovante impresso. Em maio de 2017, o ministro Gilmar Mendes apresentou publicamente a nova urna à sociedade, resultado direto da contribuição do engenheiro.
Já em 2021, Rocha integrou um grupo técnico coordenado pelo(MCTI em parceria com o Gabinete de Segurança Institucional (GSI). O grupo elaborou um relatório com propostas detalhadas para aprimorar o sistema eleitoral brasileiro, reforçando a necessidade de ajustes em áreas críticas. Essa participação reflete o reconhecimento de Rocha como um especialista na área, cuja experiência técnica foi requisitada em esferas de alto nível no governo federal.
Outro episódio relevante é sua atuação em relação ao relatório do Tribunal de Contas da União (TCU). Na ocasião, Rocha apontou inconsistências no material elaborado pelo órgão. Apesar de o relatório dos técnicos do TCU ter identificado desconformidades objetivas no sistema eleitoral, o voto final do relator concluiu que não havia necessidade de melhorias, uma decisão que, segundo Rocha, contradizia as evidências técnicas e foi contestada pelo Ministro Revisor.
Entendendo o relatório
No contexto das eleições de 2022, o Instituto Voto Legal foi contratado pelo Partido Liberal para realizar a fiscalização das eleições, através da colaboração construtiva com o TSE. Após as eleições, o Partido Liberal buscou novamente o IVL para avaliar a possibilidade de auditar o funcionamento das urnas eletrônicas. A motivação do partido veio de relatórios divulgados na imprensa e redes sociais, como o do jornalista argentino Fernando Cerimedo, que sugeriam possíveis problemas no sistema eleitoral.
A equipe do IVL analisou arquivos “Log de Urna”, registros que detalham os eventos ocorridos em cada urna durante o processo eleitoral. Segundo Rocha, o IVL seguiu rigorosamente os procedimentos descritos na Resolução 23.673/2021 do TSE, que regulamenta a fiscalização do sistema eletrônico. Essa normativa reforça o papel do “Log de Urna” como elemento essencial para auditorias e prevê processos administrativos, como a “verificação extraordinária”, em casos de indícios de mau funcionamento.
Entre as desconformidades identificadas pela equipe estão travamentos, repetição de códigos inválidos e exposição indevida de nomes de eleitores. Embora esses problemas não sejam considerados provas definitivas de fraude, foram apresentados pelo IVL como indícios relevantes que merecem investigação técnica. “Nosso objetivo não era identificar fraudes, mas apontar eventuais desconformidades técnicas e propor melhorias com base em metodologias reconhecidas de auditoria. A palavra ‘fraude’ jamais apareceu em nossos relatórios”, afirma Rocha
Um dos principais pontos levantados pelo IVL foi a ausência de um documento eletrônico individual para cada voto, assinado digitalmente com um certificado ICP-Brasil. Rocha argumentou que a falta dessa assinatura fere a legislação brasileira, incluindo a Lei 9.504/97 e a Medida Provisória 2.200/2001, que garantem a autenticidade e validade jurídica de documentos eletrônicos. Segundo Rocha, sem o certificado, os registros armazenados no Registro Digital do Voto (RDV) não podem ser auditados individualmente, comprometendo a segurança e a transparência do processo eleitoral.
Segundo o documento “Proposta Técnica de Aperfeiçoamento do Sistema de Gestão de Segurança da Informação e do Sistema Eletrônico de Votação”, produzido pelos técnicos do MCTI e do GSI o “documento eletrônico criado para cada voto deve substituir o atual arquivo RDV (Registro Digital dos Votos), que reúne todos os votos em um único arquivo na urna eletrônica. O RDV não dá ao voto a certificação legal da ICP-Brasil e não protege os votos contra alterações ou apagamento, em caso de quebra de segurança, porque o arquivo fica aberto durante toda a votação, enquanto recebe novos votos”.
Em 2017, o Ministro Gilmar Mendes assinou um convênio entre o TSE e o ITI, exatamente, para implantar a Autoridade Certificadora das Urnas Eletrônicas, certificada pelo ITI para se tornar parte da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil). Como os técnicos do TSE não concluíram esta implantação, uma desconformidade foi apontada na fiscalização. Em 2021, o site do TSE informou: “Novas urnas eletrônicas contarão com certificação da ICP-Brasil”. Entretanto, isto não ocorreu.
Outro ponto abordado foi a ausência de certificação independente para as urnas eletrônicas. Rocha comparou essa lacuna com outros setores em que a fiscalização é obrigatória: “Se até balanças de padaria precisam de certificação do INMETRO, por que a urna não deve passar pelo mesmo rigor?”, questionou. O trabalho de mestrado “Auditoria da votação eletrônica: possibilidades de atuação do controle externo.” publicado no site do TCU, em 2019, afirma que: “Constatou-se haver lacunas em diretrizes sobre transparência e observação, bem como em accountability, notadamente pela ausência de uma certificação do hardware e software e de uma avaliação independente da votação eletrônica”.
Apesar do caráter técnico e das milhares de páginas de relatórios e referências bibliográficas entregues à Polícia Federal, Carlos Rocha foi incluído no inquérito da PF sob acusações de produção dolosa de informações falsas e colaboração com ações golpistas. Em depoimentos à PF, ele enfrentou questionamentos repetitivos sobre fraudes, mesmo reiterando que essa não era a finalidade de sua auditoria. “Nosso trabalho nunca foi sobre fraude. Sempre buscamos oportunidades de aprimoramento no sistema eleitoral, em colaboração construtiva com o TSE”, afirmou Rocha, reforçando o compromisso técnico e apartidário do IVL.
O contexto das acusações
A investigação da Polícia Federal se baseia em cinco acusações principais contra o IVL:
- O relatório técnico teria sido elaborado com ciência de falsidades, mesmo após alertas internos da equipe, configurando a produção dolosa de informações falsas.
- Tentativa de ocultar informações públicas sobre o trabalho do IVL e a participação da empresa Gaio Innotech;
- A PF alega falta de rigor científico na elaboração das teses apresentadas no relatório, além de uma interpretação tendenciosa dos dados que desvirtuaria o propósito técnico da auditoria;
- O material teria sido utilizado para justificar manifestações antidemocráticas e embasar ações golpistas, desviando do propósito técnico da auditoria eleitoral;
- Por fim, a PF afirma que o conteúdo do relatório foi repassado ao argentino Fernando Cerimedo, que amplificou internacionalmente as alegações de fraude em sua live “Brazil Was Stolen”.
A seguir, detalharemos cada uma dessas acusações e apresentaremos as refutações com base nas evidências, nos depoimentos e na análise técnica realizada.
Acusação 1: produção dolosa de Informações falsas
A Polícia Federal acusa Carlos Rocha, presidente do IVL, e Éder Balbino, responsável pela Gaio Innotech, de produzirem informações falsas de forma deliberada no relatório técnico contratado pelo Partido Liberal. Segundo a PF, mensagens de WhatsApp trocadas entre Rocha e Balbino provariam que Rocha tinha ciência das inconsistências, mas optou por ignorar os alertas, configurando, assim, a produção dolosa de informações falsas. No entanto, essa narrativa desconsidera o contexto das conversas, a função de cada envolvido e a própria dinâmica natural de uma auditoria técnica. Além disso, Eder Balbino foi, apenas, um profissional de uma equipe técnica, coordenada, por Rocha, que contou com a colaboração de mais de 12 engenheiros formados no ITA.
Para entender os fatos, é necessário esclarecer os papéis de Rocha e Balbino no processo. Conforme contrato, a Gaio Innotech foi responsável pela estruturação e processamento dos dados, fornecendo uma plataforma tecnológica para análise. A equipe liderada por Balbino organizou mais de 4,2 bilhões de linhas de registros de eventos dos arquivos Log de Urna publicados pelo TSE, entregando tabelas e gráficos com base nos dados públicos. Como esclarecido em depoimento e nota pública, Balbino limitou-se a um trabalho técnico. A interpretação dos resultados, a formulação de hipóteses e as conclusões apresentadas no relatório foram responsabilidades exclusivas do IVL e de Carlos Rocha.
As mensagens de WhatsApp citadas pela PF como prova de dolo, na realidade, revelam um diálogo técnico legítimo. Balbino alertou Rocha sobre a possibilidade de correlacionar os arquivos Log com os boletins de urna (BU), mesmo na presença de repetição do código de identificação da urna (ID_UE). “Sim, é possível identificar que aquele log é daquela urna”, explicou Balbino, sugerindo que as limitações não inviabilizavam a auditoria. A postura de Balbino, longe de evidenciar falsidade, demonstra rigor técnico ao apontar questões a serem aprimoradas. Rocha concordou com Balbino e com os técnicos do TSE no fato de que cada arquivo Log de Urna está naturalmente associado à urna eletrônica que o gerou. Esta informação consta no Adendo II ao Relatório de Mau Funcionamento da Urna Eletrônica.
Outro ponto destacado pela PF envolve discrepâncias estatísticas entre urnas antigas e novas. Balbino expressou reservas sobre a validade dessa análise, mas isso não invalida o relatório. Auditorias complexas envolvem debates e testes de hipóteses, sendo natural que existam questionamentos durante o processo. Rocha, como coordenador do IVL, exerceu sua prerrogativa de apresentar as inconsistências como indícios e não como provas definitivas. O documento, de fato, aponta falhas técnicas que, segundo Rocha, merecem investigação para garantir a integridade do sistema eleitoral, seguindo estritamente a recomendação do TSE no documento “Glossário Eleições Informatizadas”: “o log da urna é um elemento de auditoria importante para os partidos políticos”, bem como o procedimento de “verificação extraordinária” estabelecido na Resolução 23.673/2021.
A PF também cita a repetição do código inválido “67305985” nos arquivos Log das urnas UE2009 a UE2015, alegando que Balbino teria refutado a gravidade da falha ao sugerir métodos alternativos de auditoria. Contudo, a observação do IVL permanece válida: a ausência de um código de identificação de urna correto, além de conflitar com a especificação técnica definida no documento “Formato dos arquivos de log”, publicado pelo TSE, compromete a rastreabilidade de cada evento registrado com erro, nos arquivos Log de Urna, gerado pelas urnas físicas, sendo uma desconformidade técnica relevante. As falhas identificadas nos arquivos Log de Urna emitidos pelas urnas merecem registro, como indícios de mau funcionamento, em especial, em função de desconformidades identificadas, pelos técnicos do TCU, como:
“i) a baixa governança no desenvolvimento e manutenção dos sistemas, deixando-os vulneráveis;
ii) fragilidades do processo de auditabilidade, com impacto na segurança das urnas;
iii) a possibilidade de identificação do voto do eleitor, resultando na quebra do sigilo do voto;
iv) a divulgação de dados errados ou sigilosos, o acesso indevido às bases de dados ou sistemas ou o vazamento e alteração de informações, inclusive com impacto no resultado das eleições; e
v) violação do sistema interno do TSE de transmissão e consolidação dos dados, com possibilidade de manipulações imperceptíveis, também com impacto no resultado dos pleitos.”
Por fim, a acusação de que Rocha e Balbino produziram deliberadamente um relatório falso ignora as características do trabalho apresentado. O relatório do IVL foi resultado de uma auditoria técnica baseada em dados públicos do TSE, do TCU, do CNJ, do ITI e de outros órgãos, e de normas técnicas internacionais,e não afirma, em momento algum, a existência de fraude. As conclusões destacam falhas como travamentos das urnas, códigos espúrios e limitações na rastreabilidade, mas são apresentadas como indícios a serem investigados, pela verificação extraordinária prevista na resolução do TSE, não como provas definitivas.
Acusação 2: tentativa de ocultar informações públicas
A PF acusa Carlos Rocha de tentar ocultar informações sobre o papel desempenhado pela empresa Gaio Innotech na elaboração do relatório técnico. Como “prova”, cita uma mensagem em que Rocha orienta Éder Balbino: “Se alguém ligar para você, a orientação é dizer que a Gaio faz um trabalho técnico para o IVL.” No entanto, o contexto da mensagem revela que Rocha apenas reforçou a separação clara de responsabilidades entre a Gaio e o IVL.
A empresa de Balbino foi contratada para fornecer suporte técnico e processar os dados públicos disponibilizados pelo TSE, enquanto a interpretação dos resultados e formulação das conclusões eram, por contrato, responsabilidade exclusiva do IVL. A orientação de Rocha visava garantir que Balbino se limitasse a esclarecer o papel técnico da Gaio, sem antecipar detalhes que cabiam ao IVL responder. A atuação da Gaio está descrita explicitamente nos relatórios técnicos entregues.
Esse tipo de alinhamento é comum em trabalhos técnicos e não pode ser interpretado como tentativa de ocultação. A própria Gaio Innotech esclareceu publicamente seu papel, reafirmando que não elaborou o relatório nem produziu conclusões sobre as urnas, atuando apenas no processamento dos dados conforme solicitado.
Ao apresentar essa mensagem como tentativa de ocultação, a PF cria uma narrativa forçada que desconsidera o caráter técnico e transparente do processo. Não houve ocultação, mas um alinhamento legítimo sobre as funções de cada envolvido, esperado em qualquer auditoria dessa complexidade.
Acusação 3: falta de rigor científico na elaboração das teses
A Polícia Federal acusa o IVL de apresentar teses sem método científico, baseadas em especulações e em interpretações preliminares que teriam sido “refutadas” durante o processo técnico. A alegação, no entanto, ignora a natureza exploratória de qualquer auditoria e desconsidera o fato de que o relatório do IVL se apresenta como uma análise de indícios técnicos, e não como prova conclusiva de fraude ou manipulação.
É importante ressaltar que as afirmações da PF desconsideraram as mais de 6,2 mil páginas de documentos entregues à PF e à PGR pela defesa de Rocha. Foi incluída uma parte significativa das referências bibliográficas, documentos publicados pelo TCU, TSE, ITI, CNJ e outros órgãos públicos, utilizados como evidências factuais para as desconformidades identificadas, no trabalho de auditoria independente.
O relatório utilizou metodologias reconhecidas de auditoria, com base em dados públicos disponibilizados pelo TSE. Foram analisadas mais de 4,2 bilhões de linhas de arquivos Log de Urna, utilizando a plataforma Gaio.io, especializada em processamento de grandes volumes de dados, e ferramentas como o Microsoft Excel. Esse processo é plenamente válido do ponto de vista técnico, sobretudo em um trabalho de fiscalização como o proposto pelo PL. A Lei Eleitoral 9.504 de 1997 garante que “Os partidos concorrentes ao pleito poderão constituir sistema próprio de fiscalização, apuração e totalização dos resultados (…).”
As mensagens de WhatsApp citadas pela PF, nas quais Éder Balbino questiona algumas hipóteses, são apresentadas fora de contexto. O que a PF interpreta como “falta de rigor científico” é, na realidade, parte do processo de validação e refinamento das análises. Em qualquer auditoria ou estudo técnico, é comum que hipóteses sejam testadas, questionadas e até descartadas ao longo do trabalho. A divergência de opiniões entre técnicos não invalida a metodologia aplicada, nem configura dolo por parte dos responsáveis.
Além disso, o IVL apresentou suas conclusões com linguagem cautelosa, tratando os problemas identificados como desconformidades técnicas que exigem esclarecimento. Em nenhum momento o relatório afirmou a existência de fraude ou manipulou os dados para sustentar conclusões artificiais. A crítica da PF à metodologia científica do IVL desconsidera a realidade do processo técnico e reduz um trabalho legítimo de auditoria a uma narrativa criminalizada. Segundo Rocha, foram adotados dois instrumentos de fiscalização, amplamente utilizados pelo TCU: o Levantamento e a Auditoria de Conformidade, incluindo a orientação para a coleta de evidências em documentos públicos.
O IVL elaborou, entre outros documentos, o Relatório de Levantamento e de Auditoria de Conformidade da Fiscalização no TSE, que detalhou 25 itens identificados como não conformidades — quando confrontados com a Constituição Federal, leis, resoluções, normas técnicas e boas práticas. Os achados foram agrupados nos seguintes temas:
- Divergências de Resoluções, Leis e da Constituição Federal;
- Assinatura Digital com Certificado Digital ICP-Brasil;
- Sigilo do Voto;
- Governança Organizacional do TSE;
- Governança e Gestão de Segurança e de Tecnologia da Informação;
- Documentação dos Processos Eleitorais;
- Certificação de Equipamentos e Programas do Sistema Eletrônico de Votação SEV.
Segundo Rocha, a construção da Matriz de Achados seguiu a metodologia estabelecida pelo TCU, em 3 de fevereiro de 2010, que escabelece:
- Achado de Auditoria: é qualquer fato significativo, digno de relato pelo auditor, constituído dos seguintes atributos essenciais:
- Situação Encontrada;
- Critério – referencial a partir do qual o auditor faz seus julgamentos em relação à situação ou condição existente. Reflete como deveria ser a gestão;
- Evidências – elementos comprobatórios do achado;
- Causa – razão do desvio;
- Efeito – consequência da situação encontrada.
Rocha explica que cada achado de auditoria decorre da comparação da situação encontrada com o critério e foi devidamente comprovado por evidências documentais publicadas na Internet e identificadas nas referências bibliográficas dos relatórios.
Acusação 4: Uso político do relatório e alegação de desvio de propósito
A Polícia Federal acusa o IVL de desviar o propósito técnico da auditoria para sustentar uma narrativa política e de produzir um relatório que teria sido utilizado para justificar ações golpistas. Segundo a PF, o documento foi elaborado com o objetivo de criar uma falsa evidência técnica que fundamentasse manifestações antidemocráticas e a decretação de um Estado de Defesa para reverter o resultado das eleições presidenciais de 2022.
A principal base da PF são mensagens trocadas entre Carlos Rocha, Éder Balbino e Paulo Geus, nas quais discutem hipóteses sobre vulnerabilidades no sistema eleitoral e análises dos logs das urnas eletrônicas. Em uma das mensagens, Rocha solicita a Balbino uma tabela comparativa com votos das urnas modelo 2020, a pedido de Valdemar Costa Neto, presidente do Partido Liberal. A PF interpreta essa solicitação como tentativa deliberada de construir uma narrativa técnica inconsistente. Além disso, a apresentação do relatório pelo PL em coletiva de imprensa no dia 22 de novembro de 2022 é apontada como prova de que o documento foi utilizado para fins políticos.
Contudo, a análise dos fatos revela fragilidades na acusação. O trabalho do IVL seguiu os parâmetros técnicos estabelecidos pelo TSE e foi baseado em dados públicos, como arquivos Log, BU e RDV, utilizando metodologias reconhecidas para identificar falhas no sistema. O relatório apontou questões como a repetição do código inválido “67305985” em urnas mais antigas, mensagens de erro e exposição indevida de nomes de eleitores, apresentando esses problemas como desconformidades técnicas que merecem esclarecimentos. Em nenhum momento o IVL afirma categoricamente que houve fraude ou manipulação intencional dos resultados.
A solicitação de recortes específicos, como a tabela comparativa com urnas modelo 2020, reflete demandas do contratante, o Partido liberal, não dos pesquisadores. O debate técnico entre Rocha e Balbino, evidenciado nas mensagens, é parte natural de qualquer auditoria complexa. Balbino alertou sobre a possibilidade de correlacionar os logs com os boletins de urna (BU), mesmo com a repetição dos códigos, afirmando: “É possível identificar que aquele log é daquela urna.” Esses alertas, porém, foram interpretados pela PF como prova de inconsistência, ignorando que discordâncias técnicas são esperadas em processos de validação e refinamento de hipóteses.
A alegação de que o relatório serviu para justificar ações golpistas carece de fundamento sólido. O uso político do relatório, incluindo sua apresentação em coletiva e a representação judicial do PL, extrapola a atuação do IVL e é de responsabilidade exclusiva do contratante. Carlos Rocha reiterou em diversas ocasiões que o trabalho do instituto tinha caráter estritamente técnico, focado em identificar problemas e sugerir melhorias no sistema eleitoral. A criminalização do relatório sob a acusação de desvio de propósito ignora a independência do trabalho do IVL e as desconformidades técnicas legítimas que foram apresentadas.
Por fim, a narrativa da PF de que o relatório foi utilizado para “alimentar manifestações antidemocráticas” desconsidera o contexto técnico da auditoria. As informações foram baseadas em dados públicos disponibilizados pelo TSE, e o relatório foi apresentado com linguagem cautelosa, destacando falhas que demandam investigação adicional. A tentativa de atribuir intenções políticas ao trabalho do IVL confunde o uso político do material – alheio ao instituto – com o processo técnico legítimo e transparente conduzido por seus responsáveis.
Portanto, as acusações de desvio de propósito e uso político do relatório se enfraquecem ao se confrontar com os fatos. As trocas de mensagens e o conteúdo do relatório demonstram um processo técnico legítimo, com debates e refinações esperados em auditorias desse tipo. A responsabilidade pelo uso político do documento cabe exclusivamente ao PL, e não ao Instituto Voto Legal, que cumpriu seu papel de forma independente e dentro dos parâmetros técnicos estabelecidos.
Acusação 5: Difusão internacional das alegações falsas via fernando cerimedo
A Polícia Federal sustenta que o material técnico produzido pelo IVL foi utilizado pelo argentino Fernando Cerimedo na live “Brazil Was Stolen”, apresentada em 4 de novembro de 2022. Segundo a PF, essa suposta “conexão” comprovaria a participação deliberada de Éder Balbino, da Gaio Innotech, e de Carlos Rocha, presidente do IVL, na disseminação internacional de alegações falsas sobre as urnas eletrônicas. No entanto, ao analisar os detalhes apresentados pela investigação, fica evidente que essa acusação se apoia em indícios frágeis, circunstanciais e mal interpretados dos fatos.
A principal peça apresentada pela PF é um rastro digital encontrado em um arquivo compartilhado no Google Drive. De acordo com a investigação, Paulo Geus, colaborador do IVL, enviou um link contendo o material a Éder Balbino, que teria “modificado” o arquivo. O documento, que supostamente mais tarde embasou a apresentação de Cerimedo, teve o nome de Balbino registrado como último responsável pela modificação. A PF utiliza essa informação como base para sugerir uma ação coordenada entre Balbino, Rocha e o influenciador argentino.
No entanto, a explicação apresentada por Balbino desmonta essa narrativa. O estatístico esclareceu que recebeu o link de Paulo Geus e, ao tentar baixar o arquivo, a plataforma Google Drive registrou a ação como “modificação” – algo comum em sistemas de armazenamento em nuvem, mesmo quando o conteúdo do arquivo permanece inalterado. Segundo Balbino, a única razão para a marcação foi o processo técnico de download. “Fiz uma cópia no Drive para conseguir baixar, mas o arquivo não era compatível com o sistema Gaio. Não editei nem compartilhei o que havia na pasta”, afirmou Balbino em depoimento.
Além disso, Balbino foi categórico ao negar qualquer envolvimento com Cerimedo. Em seu depoimento, ele afirmou: “Nunca tive contato com o senhor Fernando Cerimedo, nem diretamente, nem indiretamente. Discordo, inclusive, da forma como ele apresentou as estatísticas, pois faltava solidez na análise feita em seus vídeos”. As mensagens internas trocadas entre Balbino e outros membros do IVL corroboram essa posição. Em conversas, Balbino expressa desconforto com a viralização do material fora de contexto e se distancia do uso político do relatório.
Outro ponto frágil da acusação da PF é a tentativa de associar o conteúdo da live “Brazil Was Stolen” diretamente ao relatório do IVL. Embora existam teses semelhantes entre o que foi apresentado por Cerimedo e as hipóteses levantadas pelo IVL – como as discrepâncias entre urnas antigas (UE2009-UE2015) e novas (UE2020) – não há provas concretas de conexão entre os trabalhos.
As informações apresentadas por Cerimedo na live foram baseadas em um estudo preliminar produzido por outro pesquisador brasileiro, sem qualquer vínculo com o IVL ou Balbino. Conforme revelado em reportagem exclusiva de A Investigação, o material foi vazado indevidamente ao argentino. Esse estudo, elaborado com recursos próprios e distribuído de forma limitada em um grupo restrito de WhatsApp, não havia sido concluído nem autorizado para divulgação pública. O pesquisador responsável, que pede para não ser identificado, destacou que as análises realizadas eram exploratórias, apontando discrepâncias entre modelos de urnas, mas sem elementos conclusivos que sustentassem alegações de fraude.
Quanto a Carlos Rocha, a PF cita mensagens trocadas entre ele e Paulo Geus, mas essas conversas demonstram apenas um diálogo técnico sobre a análise dos logs das urnas eletrônicas. Não há qualquer evidência de que Rocha tenha repassado o material a Cerimedo ou participado da live.
A tentativa da PF de criminalizar a presença de um rastro digital técnico desconsidera as explicações plausíveis apresentadas pelos envolvidos e ignora a realidade dos processos tecnológicos. Arquivos compartilhados em plataformas de nuvem podem facilmente registrar a ação de um usuário como “modificação” sem que ele tenha alterado ou interferido no conteúdo.
Por fim, a live de Cerimedo é um evento independente, cuja construção e disseminação não podem ser atribuídas ao IVL ou a Balbino. Não existem mensagens, e-mails ou registros diretos que indiquem qualquer participação na elaboração ou no compartilhamento do material. O que a investigação da PF apresenta são conexões circunstanciais e interpretações forçadas, transformando um procedimento técnico rotineiro, em um indício de ação coordenada. A narrativa, ao final, se enfraquece diante das provas concretas e das explicações apresentadas pelos envolvidos.
Coleta ilegal de provas e “pesca probatória”
No dia 11 de dezembro de 2024, o advogado Melillo Dinis do Nascimento apresentou uma petição ao Procurador-Geral da República (PGR), Dr. Paulo Gonet Branco, questionando a condução do inquérito contra o engenheiro Carlos César Moretzsohn Rocha. A defesa alega ilegalidades processuais, violações de direitos fundamentais e abusos durante a investigação.
Para o advogado, a Polícia Federal adotou métodos de pesca probatória – uma busca indiscriminada por provas sem fundamentos concretos. A quebra de sigilo de Éder Balbino é apontada como exemplo, baseada em um rastro técnico no Google Drive que foi interpretado de forma errônea como manipulação. “A ação foi fundamentada em meras suposições e não respeitou os critérios legais para a coleta e utilização de dados privados”, critica a defesa.
Outro ponto central é a violação do foro adequado. Rocha, que não possui prerrogativa de foro, deveria ser julgado na primeira instância, mas foi alvo direto da Suprema Corte, desrespeitando o princípio do juiz natural. Esse excesso, segundo a defesa, compromete a legalidade de todo o processo.
Melillo Dinis reforça que o trabalho de Carlos Rocha no IVL foi técnico e legítimo, seguindo metodologias válidas e utilizando dados públicos do TSE. Qualquer tentativa de associá-lo à disseminação internacional do relatório, promovida por figuras como o influenciador argentino Fernando Cerimedo, é considerada infundada.
A defesa conclui que as acusações se baseiam em interpretações forçadas e provas frágeis, enquanto a investigação ultrapassou seus limites legais. Solicita, portanto, o envio do processo para a primeira instância, a análise adequada das provas técnicas apresentadas e o respeito ao princípio da materialidade, garantindo que as acusações sejam embasadas em provas concretas e admissíveis. Rocha entregou à PF, em seu último depoimento, em 07 de novembro de 2024, todos os relatórios elaborados para o PL no projeto de fiscalização das eleições de 2022, junto com a maioria das referências bibliográficas. Este acervo, com mais de 6,2 mil páginas, foi ignorado pela investigação da PF e entregue à PGR, para sustentar a argumentação da defesa de Rocha.