A votação na Câmara dos Deputados, na madrugada desta quarta-feira (10), que aprovou o projeto de redução das penas (dosimetria) para os condenados do 8 de janeiro representou o desfecho de uma longa e tensa etapa de negociação entre oposição e Centrão, repleta de idas e vindas, que se arrastou por todo o ano.
O placar de 291 votos a favor, 148 contra e uma abstenção isolou o governo e a esquerda, que não aceitam qualquer tipo de concessão nas condenações que alcançam o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que deu seu aval à aprovação. A próxima etapa é fechar o acordo no Senado para que a votação da pauta seja concluída ainda neste ano.
Após fortes pressões do Palácio do Planalto e, sobretudo, do Supremo Tribunal Federal (STF) para barrar a votação de uma anistia “ampla, geral e irrestrita”, como ainda deseja a direita, o avanço da chamada “anistia light” também refletiu o esgotamento do calendário legislativo, às vésperas do ano eleitoral de 2026.
O resultado foi visto pelos líderes partidários como vitória política dentro de uma pauta prioritária da direita após série de impasses e pressões, incluindo protestos de rua. A aprovação atendeu à urgência prática e simbólica para os conservadores, pois havia temor de que o adiamento manteria centenas na prisão – muitos deles desde 2023.
O discurso predominante entre parlamentares de direita — antes, durante e depois da votação — foi o de que o projeto representava o “máximo do possível” nas condições atuais. “Queríamos anistia total, mas não temos maioria. Esta foi a alternativa concreta para socorrer presos há anos”, resumiu o deputado Filipe Barros (PL-PR).
Nikolas Ferreira (PL-MG) reforçou: “não é a vitória perfeita, mas é a vitória sobre a esquerda, a injustiça e a tentativa de empurrar o tema para o esquecimento. O que conseguimos salva vidas e devolve esperança a muitos”, acrescentou o parlamentar mineiro.
Todos destacaram o “sacrifício de Bolsonaro” de acatar uma saída em favor de presos há mais tempo.
A pressa para votar a matéria se acentuou logo após a sequência de decisões que levou à prisão provisória de Bolsonaro e, em seguida, ao início do cumprimento de pena de 27 anos em regime fechado, tirando margem de negociação. O sentimento na direita é de que a urgência se impôs para o Congresso não abandonar centenas de presos do 8/1.
A bancada do PL, que defendia a anistia ampla, aceitou a colocação em pauta da votação da dosimetria na terça-feira (9), pelo presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), como uma concessão temporária. Segundo o líder da legenda, deputado Sóstenes Cavalcante (RJ), a redução de penas é “o primeiro degrau”. “É muito longe do que gostaríamos. Não desistiremos da anistia, seja o ano que for”, prometeu.
Superada a votação na Câmara, segue a analogia usada pela oposição de que o Congresso está atuando no “resgate de reféns”. Além disso, há a possibilidade de abertura de novo terreno de disputa política dentro e fora do Parlamento, com foco redobrado nas eleições.
Nikolas encerrou o dia tentando resumir o sentimento dominante na bancada do campo conservador e sua estratégia diante dos próximos desafios. “Não é o fim da luta. É o primeiro passo. E, para dar os próximos, precisamos eleger mais deputados e senadores em 2026. Só assim 2027 será, de fato, o ano da virada”.
Já o relator do projeto na Câmara, Paulinho da Força (Solidariedade-SP), mais uma vez ressaltou que a dosimetria era uma “resposta possível”. Ele garantiu que as contestações da esquerda ao STF, com o qual negociou o texto, não prosperarão.
“Ninguém saiu com tudo o que queria, mas entregamos uma resposta possível, dentro da institucionalidade. Não dava para empurrar o tema para o ano que vem”, disse o relator do projeto, Paulinho da Força (Solidariedade-SP).
Mesmo assim, a expectativa de devolução rápida de presos do 8/1 aos seus lares é considerada improvável. Após a aprovação da lei pelo Senado e eventual sanção presidencial ou derrubada de veto pelo Congresso, a aplicação da medida não será automática. Caberá às defesas solicitarem a redução de penas ao Judiciário, que por sua vez terá de proceder de forma individualizada os cálculos a partir das novas regras. Seriam precisos então mais alguns meses até a soltura.
Pré-candidatura de Flávio Bolsonaro deu empurrão definitivo para a dosimetria
A votação da dosimetria também refletiu o impacto do anúncio da pré-candidatura de Flávio Bolsonaro (PL) à Presidência. Segundo parlamentares e analistas, quando o senador entrou na disputa eleitoral e priorizou a matéria, líderes do Centrão se mexeram para dar o andamento àquilo que tinha votos seguros para ser entregue – a dosimetria.
Para o cientista político Antônio Flávio Testa, o nome escolhido por Jair Bolsonaro para representá-lo nas urnas eletrônicas deixou claro que a anistia total seria o único “preço” para desistir da disputa. Na visão de Testa, “a articulação que levou à dosimetria, envolvendo, além do relator Paulinho, figuras como Aécio Neves e Michel Temer, mirava o objetivo de tirar o ex-presidente das eleições”, avaliou.
Para o doutor em Direito pela USP Luiz Augusto Módolo, a pré-candidatura de Flávio Bolsonaro à Presidência acelerou uma pauta no Congresso que não estava prevista e mudou o clima nos bastidores. Módolo afirma que a entrada do senador na corrida presidencial, com “potencial para abalar estruturas”, elevou a pressão sobre o Legislativo. Embora não seja a anistia, observa ele, o projeto ganhou tração para ser aprovado por atender parcialmente a apoiadores de Jair Bolsonaro e por criar impacto eleitoral imediato.
A direita já havia usado todas as vias regimentais e políticas — protestos, tentativas de obstrução, aprovação de urgência e negociações com outros projetos —, mas acabou derrotada pela manobra do Centrão de trocar o texto original da anistia pela dosimetria. Por fim, a ameaça do PL de ressuscitar a anistia em plenário travou de vez a tramitação do projeto, restando então aceitar a chamada “anistia light”.
Parlamentares também relataram que o afastamento simultâneo do presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), e do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), do governo favoreceu as condições políticas para que a pauta fosse finalmente decidida. Caso contrário, haveria risco de a matéria parar no Congresso.
Ainda assim, houve uma divergência na bancada da direita. Osmar Terra (PL-RS) declarou não entender que a solução da dosimetria seja justa. “Isso é só um jeito de encerrar o assunto. Uma concessão leve, autorizada pelo Judiciário, que não encara o real problema. Quem está preso injustamente não precisa de meias-medidas”, disse.
Aplicação da futura lei não é automática
Com a dosimetria, surge a expectativa sobre a aplicação prática da lei aprovada – que ainda precisa passar no Senado, ser sancionada por Lula ou ter os vetos derrubados pelo Congresso. Analistas alertam que a revisão de pena exigirá análise individualizada, frustrando quem espera efeito imediato. “Ninguém prometeu todos em casa no Natal. Caberá ao Judiciário fazer a sua parte”, ponderou o deputado Altineu Côrtes (PL-RJ).
O cientista político e consultor eleitoral Paulo Kramer teme que muitos condenados possam ficar decepcionados por não sentirem os efeitos imediatos da anistia. “Mesmo beneficiados pela dosimetria, os presos do 8 de janeiro ficarão com a condenação em suas folhas corridas, sustentando o sentido de injustiça”.
Ele lembra que juristas alertam ser impossível calcular com precisão qualquer redução de pena, pois a proposta aprovada pelos deputados mistura frações, percentuais e mudanças de regime, sem critérios claros. Nesse cenário, eventuais correções ficarão a cargo dos senadores.
O presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, Otto Alencar (PSD-BA), anunciou nesta quarta-feira (10) Esperidião Amin (PP-SC) como relator da dosimetria no colegiado. O projeto será debatido imediatamente e a expectativa é que possa ser votado na próxima semana. O relatório deve ser apresentado já na quarta-feira (17).





