Rede Minerva tem ‘autoindicação’ de diretor para bolsa de R$ 7 mil e contrato de R$ 15 mil para ex-integrante da Secretaria de Comunicação da Presidência; Ibict diz que o projeto se estende até 2026 e material será divulgado ao longo do tempo; Secom diz não participar do projeto
BRASÍLIA – No fim de 2023, uma instituição de pesquisa ligada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) deu início a um projeto de combate à desinformação orçado em R$ 54,1 milhões. Um ano e meio depois, a rede Minerva, do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict), já recebeu R$ 10,5 milhões, mas não expõe publicamente quase nada do que produziu.
Desde que a rede anti-fake news entrou em atividade, o diretor do Ibict se “autoindicou” para uma bolsa de R$ 7 mil mensais e um dos pesquisadores viajou a Cuba para discutir parcerias com acadêmicos da ilha.
Nenhum material elaborado pela iniciativa estava aberto ao público. Após ser procurado pelo Estadão, o Ibict publicou alguns dos levantamentos.
O Ibict disse que o projeto se estende até 2026, e que as entregas da rede Minerva, inclusive as abertas ao público, ocorrerão ao longo do tempo. Parte dos produtos – como os relatórios de monitoramento das redes sociais – são restritos a órgãos públicos, disse a entidade. O Ibict também negou que o diretor da entidade, Tiago Emmanuel Nunes Braga, tenha se “autoindicado” para bolsa de pesquisa. Segundo a entidade, a indicação foi formalizada pela coordenadora substituta.
Já a Secom disse, em nota, que “não participa da governança e não aporta recursos no conjunto de iniciativas que fazem parte da Rede Minerva”.
As redes sociais são um tema sensível para o governo Lula (PT) desde o início da gestão, em 2023. O assunto voltou a ser fonte de desgaste para o Planalto este mês, após o vazamento de uma intervenção da primeira-dama Rosângela da Silva, a Janja, reclamando do TikTok num jantar com o presidente da China, Xi Jinping.
Numa entrevista a jornalistas, Lula confirmou ter tratado do tema com o mandatário chinês e que ainda pediu ao líder de um país conhecido por censurar as redes contribuição sobre como tratar do TikTok. “Eu perguntei ao companheiro Xi Jinping se era possível ele enviar para o Brasil uma pessoa da confiança para a gente discutir a questão digital”, disse Lula.
O governo tenta, desde 2023, aprovar um projeto de lei para regulamentar a atuação das redes sociais no País. Uma proposta sobre o assunto (PL 2630/2020), chegou a ser aprovada no Senado, mas está parada na Câmara.
Agora, o governo prepara um novo projeto, que inclui a possibilidade de bloquear as redes que sejam omissas sobre crimes cometidos no ambiente virtual. Pela proposta, uma autoridade ainda não designada atuará como reguladora das redes. Essa autoridade poderá bloquear o serviço sem necessidade de ordem judicial, caso a plataforma não atue. O projeto está sendo elaborado pelo Ministério da Justiça.
Embora não tenha partido diretamente do governo Lula, a rede Minerva surgiu a partir de discussões que envolveram dirigentes da Secretaria de Comunicação (Secom) da Presidência da República.
Segundo o diretor do Ibict, Tiago Emmanuel Nunes Braga, a proposta do principal projeto de pesquisa da rede foi “construída” em “interlocução com a Secretaria de Análise, Estratégia e Articulação (da Secom)” e com o então secretário, Renam Brandão. A informação consta em um documento obtido por meio da Lei de Acesso à Informação. Hoje, Renam é assessor da Secretaria de Políticas Digitais da Secom.
Procurado, o Ibict encaminhou ao Estadão alguns dos materiais produzidos pelos pesquisadores da rede. O material inclui coletas de publicações das redes sobre determinados temas. Reproduz desde tuítes de contas anônimas até postagens de influenciadores pró e antigoverno, inclusive parlamentares, como os deputados federais do PL Gustavo Gayer (GO), Julia Zanatta (SC) e Carlos Jordy (RJ) (leia mais abaixo).
A verba que banca os projetos da rede vem do Ministério da Saúde (R$ 12,1 milhões) e do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos (FDD), ligado ao Ministério da Justiça (R$ 42 milhões).
Os pagamentos das bolsas de pesquisa do projeto são feitos por meio da Fundação de Apoio da Universidade Federal de Minas Gerais (Fundep). Autorizado por uma portaria de julho de 2024, esse arranjo é o que permite ao Ibict conceder bolsas de pesquisa para seus próprios integrantes – vários servidores da instituição recebem um extra para trabalhar no projeto.
Um desses bolsistas é o atual diretor do Ibict, Tiago Emmanuel Nunes Braga. Especialista em Ciência da Informação, Tiago é o coordenador do principal projeto da rede e também o fiscal do contrato, segundo as informações disponibilizadas pela Fundep.
Em fevereiro deste ano, Tiago passou a receber uma bolsa para “classificar e sistematizar os dados” coletados na pesquisa. São R$ 7 mil por 16 horas mensais de trabalho, ou 4 horas por semana. O método de seleção foi a “indicação do coordenador”, segundo a planilha da Fundep. Ou seja, o próprio Tiago.
Ao Estadão, o tecnologista disse ter trabalhado no projeto sem receber pagamento até então. Disse ainda que a concessão da bolsa foi validada pela Subsecretaria do MCTI que cuida das unidades de pesquisa do ministério, e que o trabalho produzido por ele é validado pela coordenadora substituta do projeto, a pesquisadora Cecília Leite. “A gente tem um processo de coordenação dupla do projeto, eu e a doutora Cecília Leite”, disse.
A contratação de Braga não é a única controvérsia na rede Minerva. Atualmente, o maior salário pago pelo projeto é para um ex-integrante da Secretaria de Comunicação (Secom) da Presidência da República, Rafael Marques Caliari. Mesmo sem curso superior, Caliari recebe R$ 15.060,92 como celetista para atuar como “gerente de mídias sociais” – nenhum dos projetos que compõem a rede Minerva mantém perfil nas redes. No ano passado, Caliari iniciou o curso de Gestão da Tecnologia da Informação em uma universidade privada de Brasília.
Antes de ser exonerado da Secom em dezembro de 2023, Caliari participou das discussões que levaram à criação da rede Minerva ao lado de seu chefe à época, o então secretário Renam Brandão.
Ao Estadão, o Ibict negou que Caliari tenha atuado na formatação do projeto pelo qual foi contratado. A instituição de pesquisa também disse que ele não atua como pesquisador do projeto, e nem cuida das publicações em redes sociais.
“A função de gerente de mídias sociais não tem como foco a publicação em redes sociais, mas sim o apoio ao acompanhamento do debate público digital referente aos temas correlatos ao projeto por meio da coleta e tratamento de dados”, disse o Ibict. Segundo a instituição, Caliari trabalha com “gestão de mídias digitais e estratégia digital baseada em dados” desde 2013.
Procurado, Renam Brandão disse que a resposta da Secom já representava sua manifestação. Cecília Leite confirmou que atua como co-coordenadora do projeto, e que valida a pesquisa de Thiago. Já Caliari disse que sua atuação no projeto não é “como pesquisador, mas sim como Gerente de Mídias Sociais”. “Tenho tranquilidade sobre meus 10 anos de experiência nesta área e de minha competência para as atividades que fui selecionado e venho desempenhando”.
Cooperação com Cuba
O gasto com bolsas de pesquisa é a principal linha no orçamento da rede Minerva, mas há também outros tipos de despesas: contratação de serviços de monitoramento, compra de equipamentos e viagens. Nesta última rubrica, o maior gasto até agora foi de R$ 16,5 mil, com uma viagem para Cuba.
Um dos pesquisadores do projeto, Marco André Feldman Schneider, foi à ilha para participar do IV Colóquio Internacional Pátria, organizado pela Unión de los Periodistas de Cuba (“União dos Jornalistas de Cuba”, ou Upec na sigla em espanhol).
A edição deste ano do Colóquio foi “dedicada ao vigésimo aniversário de fundação da TeleSur, pelos líderes Fidel Castro e Hugo Chávez”.
Marco Schneider é pesquisador do Ibict e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF). Atualmente, é também o coordenador da Rede Nacional de Combate à Desinformação, a RNCD. Ele esteve em Havana entre 17 e 19 de março deste ano para compor um painel intitulado “Reprogramando a Rede: estratégias para mitigar a polarização e o discurso de ódio em meios digitais”. A viagem teve entre os objetivos “estabelecer as bases metodológicas” para a rede, mesmo ocorrendo um ano depois do início do projeto.
“Em teoria, existem duas formas de neutralizar a polarização e o discurso de ódio nas redes sociais: regulação econômica e moderação de conteúdos das plataformas digitais, com o objetivo de construir soberanias digitais nacionais e populares; e políticas públicas em grande escala, para a Alfabetização Midiática e Informacional Crítica”, disse Schneider em sua palestra.
Depois do painel, Schneider ministrou uma conferência sobre “desinformação” na Universidade de Havana e participou de reuniões sobre um possível “acordo de cooperação” entre o Ibict e a instituição de ensino cubana.
Procurado, Schneider disse que sua viagem à Cuba foi “estritamente acadêmica” para participar do Colóquio Internacional. “Diferentemente das relações internacionais entre os Estados, a cooperação acadêmica visa estabelecer a compreensão dos avanços e desafios científicos existentes nos diferentes países. A Unesco chama esse processo de diplomacia científica, que é quando, em tempos difíceis, os países mantêm o diálogo por meio das interações científicas. Esta é a principal razão para se realizar interações como a que ocorreu, manter as relações científicas e o diálogo aberto frente aos desafios de nossos tempos”, explicou ao ser indagado como um país que vive sobre regime autoritário poderia contribuir com o Brasil.
Segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras, Cuba é o país com menos liberdade de imprensa na América Latina. Na edição de 2025 do Índice compilado pela ONG, Cuba aparece em 165º lugar entre 180 países pesquisados. “A Constituição (cubana) determina que a mídia é propriedade do Estado, tornando o jornalismo – fora da imprensa oficial – ilegal, na prática”, diz a organização, acrescentando que a repressão ao jornalismo piorou na ilha desde 2021. Embora não seja oficialmente ligada ao governo, a Upec já concedeu um prêmio jornalístico ao ex-ditador cubano Fidel Castro.
Como a viagem de Schneider foi paga pelo projeto de pesquisa, ela não aparece no Portal da Transparência e nem no Painel de Viagens mantido pelo Ministério da Gestão e Inovação. Até agora, o gasto com viagens nos projetos da rede Minerva soma ao menos R$ 155 mil. Além da viagem de Schneider, há uma outra de R$ 11,2 mil do diretor do Ibict, Tiago Emmanuel Nunes Braga, para um evento de divulgação científica em Budapeste, capital da Hungria.
O que a rede Minerva produz?
O Ibict enviou ao Estadão alguns dos materiais já produzidos pela rede Minerva. Um deles é uma edição do relatório diário do DNA – trata-se de um arquivo PDF de seis páginas relacionando alguns conteúdos com desinformação sobre saúde.
Entre eles há um vídeo de um canal com 47 inscritos, e dois tuítes com discurso anti-vacina, com quatro e duas curtidas. Uma postagem da TV Bandeirantes no Instagram também é mencionada, por conta de comentários que “sugerem que pandemias e vacinação seriam uma fraude”. Ao todo, o boletim analisa 98 citações ao tema das vacinas em redes sociais, ao longo de um dia. O número foi considerado baixo por especialistas neste tipo de monitoramento consultados pelo jornal.
Procurado, o Labic disse que o volume total de postagens monitoradas é bem maior – relatórios como o visto pela reportagem são elaborados com uma filtragem das postagens originais.
O Ibict também enviou um exemplar do “Boletim Baobá”, como são chamados os relatórios produzidos no projeto bancado pelo Fundo do Ministério da Justiça. O exemplar de 49 páginas recebido pela reportagem é o Volume 1, Nº 1 (ou seja, o primeiro do tipo), datado de maio deste ano. O arquivo parecia incompleto – os nomes dos responsáveis e os créditos apareciam como “a inserir”. A periodicidade, segundo o arquivo, será semanal.
O documento traz análises do que chama de “narrativas” sobre políticas públicas, como o Bolsa Família, nas redes sociais – a maioria dos fatos citados é de março deste ano. São analisados o impacto de notícias como o corte de R$ 7,6 bilhões do Bolsa para acomodar outras despesas; e a de que autoridades financeiras estão cruzando dados de beneficiários do Bolsa para identificar possíveis operações de lavagem de dinheiro do PCC, entre outras.
No caso do corte de verbas do Bolsa Família, são mencionadas postagens sobre o tema de oposicionistas, como os deputados federais do PL Carlos Jordy (RJ), Julia Zanatta (SC) e Gustavo Gayer (GO), e o canal de YouTube anarco-capitalista Ancapsu. O relatório também reproduz postagens de influenciadores governistas, como Lázaro Rosa.
“Essa narrativa descontextualiza o corte fiscal (sic) promovido pelo Governo Federal, fazendo ilações de que o corte do Bolsa Família afetaria diretamente as famílias beneficiárias e de que serviria para financiar gastos públicos do governo com publicidade ou para financiar o Movimento Sem Terra, tratando-se assim de uma informação corrompida”, diz um trecho do relatório.
Procurada, a Secom da Presidência da República disse não participar do financiamento ou da gestão da rede Minerva. “Nenhum servidor da Secom tem participação na gestão desses projetos, não toma quaisquer decisões sobre o seu andamento e nem é por eles remunerado, a nenhum título”, disse a Secom.
Quem banca a rede anti-fake news?
Iniciada no fim de 2023, a Minerva é uma rede de pesquisa sobre suposta desinformação com três iniciativas. A maior é a “Plataforma Multidisciplinar de Escuta Social Digital, Combate à Desinformação e Promoção aos Direitos Difusos”, a PMESDI, orçada em R$ 42 milhões e bancada por um Fundo gerido pelo Ministério da Justiça. Há também o “Painel Informacional on-line de Detecção de Narrativas Antivacina” (DNA), de R$ 12,1 milhões, bancado pelo Ministério da Saúde; e o Poliedro, uma articulação com outras instituições de pesquisa, sem orçamento definido.
O financiamento da PMESDI foi aprovado no fim de 2023 pelo Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, o FDD. O FDD é um instrumento destinado a reparar danos à coletividade: quando uma empresa é multada, por exemplo, o valor pode ir ao FDD, que deve então usar o dinheiro para ações em favor de algum direito difuso – isto é, um direito de um número grande ou indeterminado de pessoas. Até o momento, o FDD já transferiu ao Ibict R$ 18 milhões para a Plataforma, dos quais R$ 6,7 milhões já foram contratados.
Já o Painel DNA é bancado pela Secretaria de Vigilância em Saúde (SVSA) do Ministério da Saúde. O monitoramento em si também não é feito diretamente pelo Ibict, e sim pelo Laboratório de Internet e Ciência de Dados (Labic) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), tocado pelo professor Fábio Malini. Dos R$ 12,1 milhões, cerca de R$ 3,8 milhões já foram pagos.
Os relatórios do Painel DNA são direcionados ao Ministério da Saúde, para consumo interno. A reportagem do Estadão questionou a pasta e o diretor do Programa Nacional de Imunizações, o médico Eder Gatti, sobre se ele conhecia a iniciativa ou estava recebendo os relatórios. Gatti se recusou a comentar, e o Ministério da Saúde não respondeu.
Crédito Estadão